Quais as implicações e o que propõe o acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé referente ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil?
I. Introdução
Trataremos de um assunto pouco comentado na mídia nestes últimos dias sobre o acordo assinado por ocasião da audiência privada no Vaticano entre o Presidente Luis Inácio Lula da Silva e Sua Santidade o Papa Bento XVI, no dia 13 de novembro de 2008. Há opiniões de juristas que ora defendem a inconstitucionalidade desse Estatuto bem como outros a total constitucionalidade a ser referendado pelo Congresso Nacional. No meio religioso permeiam também criticas ao Estatuto sob a bandeira do estado laico e da democracia que nossa Constituição nos aufere.
Antes, porém, de nos posicionarmos em relação à constitucionalidade ou não desse Estatuto, é necessário o entendimento político das relações bilaterais dos países, quais os tramites e caminhos que devem percorrer os tratados a serem incorporados em nossa Constituição e, por fim, os interesses e consequências do tratado em questão se for referendado pelo Congresso Nacional.
Duas perguntas são necessárias para o entendimento desta análise: É legitimo esse tratado entre o Estado Brasileiro e o Vaticano? O tratado jurídico proposto pelo Vaticano, se referendado pelo Congresso Nacional, é Constitucional? Eis o que desejamos responder à luz da Constituição Federal Brasileira.
II. Formação da Santa Sé e prerrogativas como Estado
É mister registrar a criação do Estado da Santa Sé que se deu em 1929 pelo Tratado de Latrão, quando sob o governo de Benito Mussolini juntamente com o Papa Pio II estabeleceram a criação desse Estado, tendo como o Pontífice seu dirigente maior elevado a chefe de Estado. Portanto, temos na história um território com pouco mais de 1 km quadrado, encravado dentro do Estado Italiano com todas as prerrogativas de Estado mesmo que em sua essência estejam os interesses da Igreja Católica Apostólica Romana.
Como Estado, pode ele então firmar tratados com outros países. Em relação ao Brasil, nossa Constituição diz no seu Art. 84, inc. VIII, que:
“Art. 84 Compete privativamente ao Presidente da República:
Inc. VIII Celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional.”
Nada há o que impeça o Brasil de celebrar a priori tratados e convenções com a Santa Sé, pois se trata de dois Estados com prerrogativas e independência para tal. Importante frisar que a Santa Sé é uma pessoa jurídica de direito internacional e independente do seu interesse maior de salvaguardar os preceitos religiosos oriundos da formação do Estado em questão, não há impedimento de tratativas entre os dois entes.
III. O Brasil como Estado laico
O que tem suscitado questionamentos por parte de representantes evangélicos e de pessoas que estão atentas a esse tratado que foi proposto com pouca divulgação no País, principalmente por seu representante máximo, é a laicidade do Estado brasileiro e o possível desrespeito a essa premissa constitucional, senão vejamos:
No art. 19 da Constituição Federal, lê-se: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
“Inc. I: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma de lei, a colaboração de interesse público;
“Inc. III: criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si."
Note-se que o referido artigo estabelece aos entes políticos o não envolvimento a quaisquer ideologias ou denominação religiosa, quer seja subvencionando ou embaraçando o seu funcionamento. Atente-se, porém, no fim do inciso I, que ressalvada, na forma de lei, a colaboração de interesse público, isso quer dizer que o Estado terá supremacia quando se tratar de interesse maior no interesse público em buscar força ou auxilio nas questões pertinentes àquilo que porventura lhe faltar para atender demandas supra com e na forma de lei através dos representantes do povo.
No artigo 5 da Constituição Federal, temos os direitos, deveres e garantias fundamentais nas quais são asseguradas inúmeras prerrogativas que atendem e protegem individualmente o cidadão brasileiro desde a garantia do seu salário até a inviolabilidade da sua vida. Dentro dessas garantias, encontra-se o direito à crença, à religião, seja ela qual for, inclusive, há de se ressaltar, o direito a não crer também. Nesse artigo encontramos a laicidade subjetiva que é o direito individual do cidadão a não se submeter a nenhuma força religiosa através de coação ou imposição do Estado. É o que depreendemos in verbis:
Art. 5, inc. VI: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias;
“Inc. VIII: ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;”
É mais do que claro, segundo esse artigo, que o cidadão e a sociedade brasileira têm amparo legal no que diz respeito à pratica e a liturgia religiosa sendo vedado qualquer tipo de interferência, quer seja através do próprio Estado, de denominação religiosa, seja ela qual for, e de tratados internacionais, sejam eles de que país forem. Não fazemos alusão somente à Igreja Católica, pois lembramos que há vários países fundamentalistas em que religião e Estado se fundem.
IV. Cláusulas Pétreas e Direitos e Garantias Fundamentais
Há de se destacar aqui talvez o ponto mais importante da Constituição Brasileira que todos devem ter conhecimento. Nossos legisladores, chamados de Poder Constituinte Originário, ao elaborarem a carta magna (Constituição), tiveram a preocupação de preservar algumas normas constitucionais que não podem ser alteradas sob nenhuma forma. Encontra-se no Art. 60, parágrafo 4 da CF, assim exposto:
Parágrafo 4: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.
Nenhuma das cláusulas que compõem o parágrafo 4 do Art. 60 da Constituição podem ser alteradas pelos meios legais estabelecidos pela própria Constituição. Evidentemente que estamos tratando de um Estado de Direito em que a Constituição é respeitada pelos poderes e em nome do povo ela é suprema. Em passado recente, sabemos que muitos direitos foram suprimidos em decorrência da ditadura militar em que o poder sai da representatividade do povo e vai para as mãos de golpistas e contrários ao Estado de Direito.
A ser preservada a carta magna nos moldes atuais, deverão ser respeitadas as cláusulas em questão, principalmente o inciso IV, que trata dos direitos e garantias individuais. Esse inciso está contemplado no extenso artigo 5 da Constituição, no qual se encontram os incisos VI e VIII, que tratam da liberdade religiosa. Portantom nenhum tratado terá validade ou algum poder de se sobrepor ao já estabelecido.
V. Estatuto Jurídico da Igreja Católica e sua Inconstitucionalidade
O Estatuto Jurídico da Igreja Católica possui em sua redação 20 artigos. Analisando um a um esses artigos, é perceptível que muitos deles estão de acordo com a legislação brasileira de modo que não conflitam com nossas leis. Porém, há determinados artigos, tais como o Art. 11, que se confrontam com nossa legislação, a saber:
Art. 11: “A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.
§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.”
Exatamente onde deve prevalecer o Estado laico, que é nas instituições públicas em que não deve haver supremacia e imposição ideológica de uma denominação religiosa, quiçá fundamentos filosóficos, éticos e morais, a Igreja Católica tenta resgatar o ensino religioso como no passado em que, eu mesmo, na minha formação primária, tive que me submeter às liturgias católicas tendo outra formação religiosa antagônica aos princípios católicos.
Os artigos 8, 9, 11, 14, 15, 17 e 18 do referido Estatuto, a meu juízo, ferem o principio do Estado laico, portanto, confrontam a lei maior que é nossa Carta Magna. Não deve ser referendado pelo Congresso Nacional por ser inconstitucional e por afrontar e desrespeitar a isonomia e o pacifico relacionamento entre a diversidade cultural e religiosa de nossa sociedade.
Se, porventura, nossos legisladores referendarem esse Estatuto, e para não nos tornamos reféns do mesmo, temos ainda remédio constitucional disposto nos Art. 103 e 102, respectivamente, da Constituição Federal, que dizem:
Art. 103: “Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade.
“Inc. IX: confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional
Art. 102: “Compete ao Supremo Tribunal Federal precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
Inc. III, alínea b: declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal.
Meu desejo é demonstrar que mesmo havendo risco de sofrermos imposição legislativa oriunda de uma força ou poder religioso, ainda temos mecanismos de defesa ofertados pela própria Constituição de que deve ser respeitada como principio e fundamento de uma sociedade organizada que zela por suas leis. Se os evangélicos se sentirem preteridos pelo Estatuto, podem propor essa ação de inconstitucionalidade que ficará a cargo do Supremo Tribunal Federal julgar.
Se hipoteticamente for referendado o Estatuto e o STF julgar improcedente uma ação direta de inconstitucionalidade impetrada por evangélicos, é bom lembrar que cada cidadão ainda assim terá como cláusula pétrea o direito à liberdade religiosa e poderá arguir sempre que necessário o seu direito quando o mesmo se manifestar contrário ao seu interesse. Nenhum estudante poderá ser constrangido em instituições públicas a ter que se submeter a liturgias, rezas e orações, se as mesmas não fizerem parte de sua formação. Entendo que esse direito abrange toda a estrutura educacional, mas me atenho ao público onde o Estado se manifesta em principio.
VI. Conclusão
Portanto não há o que temer em relação a esse Estatuto. Nenhum Estado estrangeiro pode impor em nosso país qualquer mudança dentro das cláusulas pétreas estabelecidas. Nem doutrina religiosa, nem dia de guarda, nem matérias educacionais, etc.
Questiono a constitucionalidade dos feriados nacionais religiosos, herança de um passado em que o Estado tinha forte envolvimento com a igreja e por isso foram instituídos por lei, hoje seguidos e respeitados por todos, católicos, evangélicos, ateus e demais. Se somos contrários as regras de uma igreja que podem ser impostas a grande parte da sociedade, deveríamos questionar outras regras que aparentam ser um benefício. Seria um princípio de coerência. Se refutamos o ônus por que nos agraciaríamos com o bônus? É outra discussão que merece outro espaço e pesquisa.
O intuito desta análise foi contribuir e esclarecer as pessoas que porventura tenham dúvidas em relação a esse Estatuto, e as consequências, se for referendado, e por ter lido algumas opiniões que não se coadunam principalmente com a Constituição Federal que defendo ardorosamente e, mesmo numa linguagem jurídica, procurei ser o mais claro e sucinto possível, apesar de não ser fácil a clareza quando se aborda um assunto que requer um pouco da técnica jurídica. De qualquer maneira, acredito num país que respeita sua Constituição e teríamos um país melhor se as pessoas conhecessem mais seus direitos e fizessem valer o que está contido na Carta Magna.
(Livingston Santos Streck é bacharel em Direito)
Importante: sugiro a todos os prezados amigos cidadãos que enviem suas manifestações aos nossos representes políticos para que saibam que estamos atentos às questões que nos dizem respeito.
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