Seria o Deus do Antigo Testamento carrasco e
sedento por sangue?
“Ouviste o que foi
dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai
os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos
do vosso Pai celeste, porque Ele faz nascer o Seu sol sobre maus e bons e vir
chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5:43, 44).
“Quando o Senhor,
teu Deus, te introduzir na terra a qual passas a possuir, e tiver lançado
muitas nações de diante de ti, os heteus, e os girgaseus, e os amorreus, e os
cananeus, e os ferezeus, e os heveus, e os jebuseus, sete nações mais numerosas
e mais poderesosas do que tu; e o Senhor, teu Deus, as tiver dado diante de ti,
para as ferir, totalmente as destruirás; não farás com elas aliança, nem terás
piedade delas” (Dt 7:1-3).
Amor e destruição.
Duas palavras que sumarizam os textos acima. O mais intrigante é que essas duas
passagens descrevem o mesmo Deus. Alguns cristãos, no passado e atualmente,
numa tentativa quase desesperada para solucionar essa gritante contradição,
sugeriram que o Deus do Antigo Testamento é diferente dAquele que encontramos
nas páginas do Novo Testamento. Enquanto o primeiro é caracterizado como
violento, sanguinário e mau, o segundo é apresentado como amoroso, perdoador e
bondoso.
Mas não são apenas
determinados cristãos que veem o Deus de Israel como um Deus mau. Em anos mais
recentes, alguns ateus têm se valido de certas partes das Escrituras hebraicas
para reprovar o caráter de Deus, como é apresentado ali. Veja, por exemplo, o
que o acadêmico de Oxford, Richard Dawkins, escreveu a respeito de Yahweh:
“O Deus do Velho
Testamento é provavelmente o mais desagradável dos seres em toda a ficção. O
ciúme e o orgulho do mesmo o leva a um mimado e imperdoável controle dos mais
fracos com evidente sede de sangue e desejo de limpeza racial. Um machista,
homofóbico, infanticida, genocida, filicida, pestilento, megalomaníaco,
sadomasoquista, caprichoso e malevolente fanfarrão.”[1]
Deus é tudo isso?
Para Dawkins, sim! Ele seria capaz de adicionar uma passagem bíblica em cada
uma dessas descrições. A pergunta que surge não é outra senão: Como entender essas
passagens do Antigo Testamento que dão margem para interpretações como a do
cientista de Oxford? Abaixo,
veremos dois exemplos de passagens relacionadas com a escravidão no território
de Israel e a destruição dos cananeus.[2]
Leitura equivocada
Um erro grave
cometido por Dawkins – e também por muitos cristãos atuais – é ler o Antigo
Testamento como se ele tivesse sido escrito no século 21 e para nós,
ocidentais. Ao lermos o texto bíblico, precisamos nos lembrar de que ele foi
escrito no Oriente Médio, no 2º e 1º milênios antes de Cristo. Acredite, isso
resolve muitos problemas! Em lugar de comparar leis e práticas de Levítico,
Números e Deuteronômio com leis atuais, compare com os códigos de leis dos
povos daquela região e época.
Ilustraremos isso
com o caso da escravidão. Essa foi a primeira lei que Deus deu aos israelitas,
quando eles saíram do Egito (cf. Êx 21:1-11). Na lei mosaica, sequestrar alguém
para ser vendido como escravo era um crime punido com pena capital (Êx 21:16).
Um escravo hebreu deveria trabalhar apenas seis anos para pagar sua dívida,
sendo liberto no sétimo ano sem pagar nada (Êx 21:2). Além disso, ele deveria
receber de seu proprietário alguns animais e alimentos para começar a vida
novamente (Dt 15:13, 14).[3] Durante seu período de serviço, o(a) escravo(a)
teria um dia de folga semanal, o sábado (Êx 20:10).
Notou alguma
diferença entre a escravidão bíblica e aquela mantida em nosso país, há alguns
séculos? A diferença também é significativa quando comparamos essas passagens
bíblicas com o famoso Código de Hamurabi, rei de Babilônia, no 18º século a.C.
Se algum escravo fugisse, ele deveria ser morto; enquanto que, em Israel, esse
escravo deveria ser protegido (Dt 23:15, 16). Proteger um escravo fugitivo, em
Babilônia, era uma grande ofensa, também punida com morte, como evidenciado nas
leis 15-20 do referido código.[4]
Alguém pode
questionar o motivo pelo qual Deus não aboliu a escravidão entre os israelitas.
Lembre-se de que eles estavam inseridos numa cultura impregnada dessa prática.
Mesmo que Deus a abolisse, isso não mudaria a forma como eles pensavam. A
título de ilustração, imagine o árduo processo cultural para tornar a Arábia
Saudita em uma democracia! Mesmo que essa mudança fosse feita, ainda levaria um
bom tempo até que a mentalidade da nação fosse mudada. No entanto, a legislação
israelita oferecia um tratamento muito mais humano para os escravos, colocando
escravo e senhor em pé de igualdade (cf. Jó 31:13-15).
Sedento
por sangue?
Foi somente no século passado que a palavra “genocídio”
foi criada pelo polonês Raphael Lemkin. Não existia uma palavra capaz de
descrever o que Pol Pot fez no Camboja; Mao Tse-tung, na China; e Adolf Hitler,
na Europa. Milhões de vidas foram exterminadas nesses e em outros genocídios.[5]
Quando lemos textos como aquele de Deuteronômio, citado no início deste artigo,
deveríamos colocar Deus nesse hall da
fama sanguinário? Não. Há uma gigantesca diferença entre o que vemos no Antigo
Testamento e aquilo que aconteceu no século 20.
Que motivos levaram Deus a punir as nações de Canaã?
Abaixo veremos pelo menos quatro:
Sacrifícios humanos. A adoração entre os povos de Canaã
não era tão inocente como alguns podem pensar. O culto ao deus Moloque, por
exemplo, envolvia sacrifícios de crianças. Vestígios arqueológicos desse tipo
de prática foram encontrados em Hazor, bem no centro de Canaã.[6] Alguns textos
bíblicos sugerem que Salomão e Manassés podem ter participado desse tipo de
prática (cf. 1Rs 11:7; 2Cr 33:5, 6). Em Levítico 20:1-3, Deus deixou clara Sua
reação diante desse tipo de prática: pena de morte.
Homossexualidade.
Aparentemente, a prática do homossexualismo não era condenada entre os povos do
antigo Oriente Médio. Não dispomos de informações diretas da prática entre os
cananeus, mas, no entanto, passagens como Levítico 18:3, 24-30, com sua
condenação generalizada das práticas sexuais dos cananeus e dos egípcios, podem
implicar que os habitantes de Canaã toleravam a prática do homossexualismo. Uma
ideia mais clara pode ser obtida da história de Sodoma, em Gênesis 19.[7]
Incesto. Nos contos religiosos dos cananeus, Ba’al,
uma divindade bem conhecida nas páginas do Antigo Testamento, mantinha relações
sexuais com sua mãe, Asherah, sua irmã, Anat, e sua filha, Pidray, que também
era sua esposa![8] Como uma doença degenerativa que se alastra aos poucos pelo
corpo, o mesmo se dava com a prática do incesto naquela época. No Egito, por
volta do 14º século a.C., se alguém tivesse um sonho incestuoso com sua mãe ou
irmã, era sinal de bom presságio.[9]
Bestialismo ou Zoofilia.
Note a lei 199 de um código Hitita, povo que residia ao norte de Canaã, na
atual região da Turquia: “Se um homem tem intercurso sexual com um porco ou
cachorro, ele deverá ser morto. Se tiver intercurso com um cavalo ou mula, não
há punição.”[10] Mas ainda existia espaço para mais bestialismo em Canaã. No
texto “O ciclo de Ba’al”, essa divindade mantinha relações sexuais com uma
vaca, e ela deu à luz um filho fruto dessa relação.[11]
Por
que Deus mandou que os israelitas destruíssem os cananeus? Porque Ele odeia
o pecado! Tal palavra soa estranha aos nossos ouvidos. Nossa visão quase
romântica de Deus deixou espaço apenas para o amor e se esqueceu quase
completamente de Sua justiça e santidade. Um leitor atual pode achar Elias
severo demais matando 450 profetas de Ba’al (cf. 1Rs 18:40), ou Deus agindo com
muita violência enviando pragas contra o Egito (cf. Êx 7-12). A verdade é que um
Deus santo não pode suportar a maldade por muito tempo. De acordo com o profeta
Habacuque, Ele não é capaz de olhar para o mal (cf. Hc 1:13). Quem sabe nós consideremos essas e outras passagens
agressivas demais porque ainda não descobrimos quão cruel e horrível é o mal.
Mas
é necessário um equilibrio aqui. Apresentar somente a justiça e a santidade de
Deus pode nos levar para uma compreensão quase tirana de Sua pessoa. É
necessário vermos também os esforços dEle em favor dos cananeus. Deus enviou
José para o Egito com o objetivo de salvar toda aquela região da fome que durou
sete anos (cf. Gn 45:4-8). Além disso, os israelitas permaneceram no Egito por
400 anos com o objetivo de dar oportunidade para os cananeus se arrependerem de
suas iniquidades (heb. ‘awon) (cf. Gn
15:16). Após saírem do país dos faráos e passarem 40 anos no deserto, até mesmo
uma prostituta, Raabe, sabia o que Deus havia feito e o que Ele faria em Jericó
e em todo o território de Canaã (cf. Js 2:9-13). Os cananeus sabiam que o juízo
de Deus estava às portas. Note que Raabe foi poupada dessa destruição. Ela
estava disposta a ser regenerada dessa cultura, assim como Deus estava disposto
a salvar aqueles que demonstrassem profunda tristeza e mudança diante dos seus
maus atos.
É
possível ver aqui um traço do caráter de Deus revelado mais explicitamente no
Novo Testamento. Em 2 Pedro 3:9, o apóstolo nos lembra de que o Senhor “não
retarda a Sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, Ele é
longânimo para convosco não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem
ao arrependimento”. Assim como ocorreu com os cananitas, as oportunidades de
arrependimento e salvação para um mundo cada vez mais contrário aos preceitos
divinos estão chegando ao fim. Deus é amor, mas também precisa ser justo com
Seus filhos. Amor e destruição? Não. Amor e justiça.
Quão
bom é Deus? Ele mesmo respondeu, dizendo: “Senhor, Senhor Deus compassivo,
clemente e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a
misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o
pecado, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos
filhos e nos filhos dos filhos, até a terceira e quarta geração” (Êx 34:6, 7).
(Luiz Gustavo Assis é
pastor adventista em Porto Alegre, RS)
Referências:
1. Richard Dawkins, Deus, um Delírio (São Paulo: Cia. das
Letras, 2007), p. 31. Sam Harris também fez severas críticas ao Antigo
Testamento em sua obra Carta a uma Nação
Cristã (São Paulo: Cia. Das Letras, 2007).
2. Diversos
materiais têm sido publicados sobre esses dois tópicos, entre eles: Paul Copan,
Is God a Moral Monster? Making Sense the
Old Testament God (Baker, 2011); Clay Jones, Killing the Canaanites: A Response to the New Atheism’ “Divine
Genocide” Claims, disponível em http://www.equip.org/articles/killing-the-canaanites
(acessado em 9/3/11); Stanley Gundry (ed.), Deus
Mandou Matar? Quatro pontos de vista sobre o genocídio cananeu (São Paulo:
Vida Nova, 2006); Roy Gane, “Israelite Genocide and Islamic Jihad”, Spectrum 34:3 (2006), p. 61-65.
3. Gary
Rendsburg, The Fate of Slaves in Ancient
Israel. Disponível
em: http://www.forward.com/articles/2888/ (acessado em 9/3/11).
4. Eugene E.
Carpenter, Deuteronomy, em Zondervan
Illustrated Bible Backgrounds Commentary, ed. John Walton (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2009), p.
1:496.
5.
O matemático judeu
David Berlinski cita duas páginas de estatísticas de massacres cometidos no
ultimo século, em sua obra The Devil Delusion:Atheism
and Its Scientific Pretensions (New York: Basic Books, 2009), p. 22-24.
6. E. E.
Carpenter, Human Sacrifice, em The
International Bible Encyclopedia, ed. Geoffrey W. Bromley (Grand Rapids:
Eerdmans, 1988), p. 4:259. Para mais informações sobre os cultos a Moloque, ver
George Heider, Moloch, em The Anchor
Bible Dictionary, ed. David Noel Freedman (Doubleday, 1992), p. 4:895-898.
7.
Gordon J. Wenham, The Old Testament Attitude to Homosexuality, Expository Times 102 (1991),
p. 361.
8.
William F. Albright, Yahweh and the Gods of Canaan: A Historical Analysis
of Two Contrasting Faiths (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1968), p. 126.
9.
Lise Manniche, Sexual Life in Ancient Egypt (London: Routledge, 1987),
p. 100.
10.
Harry A. Hoffner Jr., “Incest, Sodomy and Bestiality in the Ancient Near East”,
in Orient and Occident: Essays Presented to Cyrus H. Gordon on the Occasion
of His Sixty-fifth Birthday, ed. Harry A. Hoffner, Jr. (Neukirchen Vluyn,
Germany: Neukirchener Verlag, 1973), p. 82.
11.
Hoffner, Jr., p. 82.
Leia
também:
“UmDeus sanguinário?”