terça-feira, abril 23, 2013

A psicologia dos mártires

Como entender a mente de um mártir? O que faz alguém manter a fé pela qual é torturado?

“Mártir” (do grego martys, “testemunha”) é alguém que é morto por causa de sua fé, pelo simples fato de professá-la. A princípio, o termo era aplicado aos cristãos que sofriam torturas ou a morte por sustentar suas crenças. No entanto, com o passar do tempo, a palavra incorporou outros conceitos. Morrer pela pátria, pela liberdade, pela independência, pela autonomia de um povo, por um ideal social ou político, ou até mesmo em uma guerra são ideias que passaram a fazer parte do significado da palavra mártir. Neste artigo, falaremos sobre os mártires cristãos.

Torturas e tormentos – Quando pensamos nos mártires do cristianismo, quase sempre nossa mente se reporta ao Coliseu, aos cristãos sendo lançados às feras ou às fogueiras nas quais eram queimados vivos. Embora essas fossem formas frequentes de martírio, não eram as únicas. Na verdade, quando estudamos as torturas infligidas aos cristãos ao longo da História, é difícil acreditar e entender como o ser humano é capaz de chegar a tal ponto de frieza e crueldade. A fim de se ter uma pálida ideia do que implicava alguém tornar-se um mártir, estão relacionadas a seguir algumas das formas de suplício aplicadas aos cristãos.

Cruzes, estacas e suspensão. À semelhança de Cristo, a pessoa era pregada ou amarrada a uma cruz ou estaca. Para intensificar o sofrimento, as posições variavam: de cabeça para cima ou para baixo; pendurados pelos braços ou pés, com ou sem pesos ou pedras amarrados; e pelos cabelos, no caso das mulheres. Em algumas ocasiões, o mártir era coberto com mel e então suspenso numa estaca ou poste para ser atormentado por moscas e abelhas ao sol, quando não, posto na terra nessa mesma condição, a fim de ser mordido por formigas.

Rodas. Eram variadas. Em alguns casos, o mártir era amarrado a uma grande roda em formato cilíndrico, que era solta a certa altura sobre terreno pedregoso. Outras vezes, eram amarrados a uma roda estreita que girava sobre uma plataforma cravejada com pontas de ferro, de modo que o mártir era mutilado à medida que a roda girava.

Estiramento e esmagamento. O indivíduo era preso pelos braços a uma estaca e pelos pés a uma talha (uma máquina simples baseada num sistema de roldanas, acionada manualmente). Ao passo que a talha era acionada, o corpo era esticado a ponto de deslocar os ossos. Também utilizando uma talha, ou pedra enorme, alguns iam sendo esmagados aos poucos.

Uso do fogo. Os torturadores eram pródigos no uso do fogo. Em um dos tipos de tortura, o mártir era lançado de cabeça em um caldeirão cheio de chumbo fundido ou óleo fervente. Alguns eram literalmente fritos em panelas ou chapas aquecidas, adaptadas ao seu tamanho. Havia também o chamado touro de bronze, que consistia numa escultura oca, em cujo interior (semelhante a um forno) o condenado era posto para morrer assado, após serem acesas as chamas na parte inferior do animal. Segundo a tradição, Antipas, mencionado em Apocalipse 2:13, foi martirizado assim.

Esfolamento. Sem dúvida, uma das mais cruéis formas de tortura. Nesse caso, o mártir era amarrado e esfolado (tinha sua pele retirada) vivo. A tradição conta que o apóstolo Bartolomeu foi submetido a essa forma de suplício.

Outros tipos de tortura. Faltaria espaço para descrever cada tipo de tortura, método ou os instrumentos fabricados para esse fim contra os cristãos na Antiguidade e no período da Idade Média. É horrendo observar a inteligência e criatividade humanas para o mal, mesmo numa época de profundo atraso intelectual. Outras formas de martírio eram: afogamento (o mártir era preso em uma caixa de chumbo e atirado aos rios), perfurações (prendia-se o indivíduo e perfurava-o com lanças, espadas, estacas pontiagudas, punhais, etc.), amputação (os membros eram amputados um a um, com auxílio de machados, lâminas ou serras), espancamento, apedrejamento, uso de espinhos e farpas sob as unhas, entre outras.

Fato curioso – Os relatos de martírio de cristãos revelam algo intrigante. Boa parte dos que eram torturados e assassinados por sua fé passava seus últimos momentos cantando, louvando a Deus ou orando. Em alguns casos, enquanto morriam, encorajavam os que assistiam a cena a serem fiéis a Deus, fazendo do local de martírio uma espécie de púlpito.

A psicologia dos mártires – Como entender a mente de um mártir? O que faz um ser humano, diante das mais cruéis torturas, manter firmes suas crenças? Qual o segredo pelo qual pessoas frágeis – mulheres, idosos, pobres sem expressão – eram capazes de se colocar diante de reis e imperadores, juízes e autoridades com ousadia invejável? Que força era aquela que, no calor da fogueira, sentindo as chamas a carbonizar seu corpo, era capaz de entoar as mais belas canções de louvor? Qual a psicologia de um mártir? Se pudéssemos entrar em sua mente e examinar as profundezas de seu coração, o que encontraríamos? Qual a razão de tanta coragem e força sobre-humanas. Qual a mola propulsora que impeliu milhares de cristãos, ao longo dos séculos, a trilhar um caminho de lágrimas, sangue e morte?


Faz parte do mecanismo natural de defesa da maioria dos seres vivos recuar diante do sofrimento. Desde muito cedo, aprendemos, na prática, o que isso significa. Qualquer criança que insista em “cutucar” os bolos feitos por sua mãe, mais cedo ou mais tarde, vai se deparar com a realidade de que o fogo, ou o calor, queima. A primeira reação natural diante da sensação de queimadura é retirar imediatamente o dedo, afinal, ninguém quer ser queimado.

Fugir de situações que ofereçam risco à integridade física não é necessariamente um ato de covardia; faz parte do instinto de sobrevivência. Deus nos dotou desse instinto a fim de sobrevivermos neste mundo hostil e perigoso, após o pecado.

Contudo, o que impressiona é que o caso dos mártires contradiz a lógica da biologia. Em lugar de recuar diante do sofrimento, eles iam ao seu encontro. Em lugar de fugir, se submetiam, mesmo diante da possibilidade de evitar o martírio. Como entender?

Ao se analisar a história dos mártires cristãos, as declarações de alguns deles momentos antes de morrer e os relatos de testemunhas oculares, nota-se que sua consciência era bem clara com relação a algumas questões existenciais.

Senso de identidade (“Quem eu sou?”). Os que morriam por sua fé tinham convicção de quem eles eram. Tinham certeza de sua filiação – eram filhos de Deus (Jo 1:12) –, bem como de sua cidadania – sua verdadeira pátria era o Céu (Fp 3:20).

Senso de origem (“De onde vim?”). Os mártires criam que eram fruto da criação de Deus. Estavam cientes de estar devolvendo-Lhe, em louvor, a vida que dEle receberam. Não eram os algozes cruéis os donos de sua existência, mas o Deus Criador.

Senso de propósito ou missão (“Por que estou neste mundo?”). Os cristãos sabem – ou deveriam saber – que não estão neste mundo simplesmente por estar; há um propósito, uma missão: ser testemunhas de Deus e conduzir outros a Ele. Esse senso de missão gerava nos mártires um forte sentimento de dever, a ponto de, se preciso fosse, depor a vida no seu cumprimento.

Senso de destino (“Para onde vou?”). Ao contrário dos gregos, que acreditavam que a História vai e volta num movimento cíclico, como uma eterna roda gigante, judeus e cristãos sempre acreditaram que o tempo é linear. Isso significa que viemos de algum ponto no tempo e caminhamos rumo a outro ponto. A História, na visão judaico-cristã, também é climática, o que quer dizer que chegará a um clímax, a um ponto culminante. De acordo com a Bíblia, o ponto culminante da História é o momento em que Cristo voltará à Terra para colocar fim ao reinado do mal e estabelecer Seu governo eterno. Nesse paraíso tomarão parte os que permanecerem fiéis. Saber disso dava aos mártires o conforto necessário para abrir mão do que fosse preciso no presente, visando ao futuro.

Conhecer os assuntos nos quais se concentravam, ou seja, o foco de seus pensamentos, também nos ajuda e entender o que se passava na mente dos mártires.

Foco na eternidade. Os mártires cristãos tinham consciência de que sua vida neste mundo, por maior que fosse a duração ou o sofrimento, jamais poderia ser comparada à eternidade. Ao morrer por sua fé, sabiam que estavam trocando o finito pelo ilimitado, o escasso pelo incalculável.

Foco na recompensa. Embora os cristãos sinceros não O sirvam por interesse, Deus promete recompensas aos fiéis. A maior delas, sem dúvida, é a vida eterna num mundo perfeito. Manter o foco nessa recompensa ajudava os mártires a transferir seu olhar das chamas que os consumiam e das feras que os dilaceravam para a glória do mundo por vir e suas alegrias.

Foco em Deus. A comunhão com Deus era o segredo fundamental por trás da resistência e perseverança dos mártires do passado. Os que morriam por amor a Cristo O conheciam, pois mantinham com Ele um relacionamento pessoal e diário. Orar, memorizar textos bíblicos e cantar hinos de louvor a Deus era parte da rotina dos antigos cristãos. Essa intimidade com o Eterno fazia com que não hesitassem em entregar a vida. Viver ou morrer para a glória de Deus era sua aspiração.

Fator ressurreição – Além dos elementos subjetivos mencionados acima, é importante destacar que a coragem dos mártires também era baseada em um fato histórico: a ressurreição de Jesus. Por que pessoas sofreriam, voluntariamente, execuções horríveis, quando podiam evitá-las, simplesmente renunciando sua fé? A única resposta plausível – especialmente no caso dos apóstolos e dos cristãos do primeiro século – é que essas pessoas tinham absoluta convicção de que Cristo realmente havia morrido e ressuscitado dentre os mortos, comprovando assim ser o Filho de Deus.

Essa evidência se torna ainda mais contundente quando consideramos o fato de que aqueles discípulos não obteriam nenhuma vantagem em sustentar seu testemunho, caso fosse mentira. Muito pelo contrário, o resultado de manterem sua confissão seria – como foi – perseguição e morte. A certeza da ressurreição de Cristo foi, senão a principal, uma das maiores motivações do martírio cristão.

A ação do sobrenatural – Sem a atuação do Espírito Santo, convicção alguma seria capaz de suportar tamanho sofrimento até o fim diante da possibilidade de renúncia. Em última análise, é Deus, através de Seu Espírito, quem fortalece o mártir. De acordo com Jesus, é Ele quem põe as palavras certas nos lábios dos que são levados a depor diante das autoridades (Mt 10:19,20). O mesmo Deus os reveste da força necessária para enfrentar o julgamento, a tortura e, por fim, a morte (2Tm 4:17). Assim, a razão maior da força e coragem dos mártires vinha do Céu.

Por que Deus permitiu? – Talvez você já tenha feito essa pergunta, ao ouvir a história dos mártires do cristianismo. Mas, para dar uma resposta satisfatória a essa questão, precisaríamos abordar o tema da origem do mal, do grande conflito e do porquê do sofrimento, e esse não é o propósito deste artigo. O que podemos dizer aqui é que a morte daqueles heróis da fé faz parte de um enredo muito mais amplo do que nossa mente é capaz de entender. Aspectos como a soberania de Deus e o caráter e fidelidade dos próprios mártires eram pontos que estavam em jogo. Além disso, é incontestável o fato de que o testemunho de fé dessas pessoas contribuiu decisivamente para a salvação e encorajamento de milhares de outros cristãos através dos séculos, bem como daqueles que tiveram que enfrentar situações semelhantes na defesa da verdade.

Qual a diferença? – A definição de mártir, como vimos, não se aplica unicamente aos cristãos que sacrificavam a vida defendendo sua fé, mas também àqueles que morrem por ideais patrióticos, políticos ou sociais. Há quem classifique como mártires também aqueles que morrem na chamada “guerra santa”, extremistas religiosos que, geralmente, recorrem ao suicídio como tática de combate.

Afinal de contas, qual a diferença entre os mártires cristãos e Tiradentes (chamado mártir da Inconfidência Mineira), por exemplo, ou os homens-bomba?

A diferença básica, em minha opinião, está na cosmovisão. “Cosmovisão” é um termo utilizado no campo da Filosofia para se referir ao “quadro de ideias e crenças pelas quais um indivíduo interpreta o mundo e interage com ele”. De maneira simples, cosmovisão são os óculos através dos quais cada um enxerga a vida, ou o mundo ao seu redor.

A cosmovisão de um mártir cristão era radicalmente oposta à visão de mundo dos outros “mártires”. Conforme já falamos, os cristãos tinham em mente, bem claras, as principais questões que dizem respeito à existência (“Quem sou?”, “De onde vim”, “Por que estou neste mundo?” e “Para onde vou?”). A resposta a essas perguntas conferia a eles uma visão completamente abrangente da vida e da realidade. Além disso, os três focos mencionados (foco na eternidade, foco na recompensa e foco em Deus – principalmente o último) faziam com que os mártires cristãos tivessem uma motivação muito mais ampla do que os demais.

A decisão daquelas pessoas, de render a vida em lugar de renunciar a fé, longe de ser um ato movido por paixão ou fanatismo (como no caso de terroristas suicidas), era algo racional. Havia lucidez na atitude delas, sua consciência era clara e sua razão, sadia. Em lugar de manter uma religiosidade doentia e extremista, tinham plena acuidade mental para pesar as consequências de sua decisão.

Enquanto os mártires do fanatismo religioso defendem a luta, a guerra, os mártires cristãos eram partidários da paz e da não reação. Ao passo que aqueles promovem o assassínio em massa, estes defendiam o valor da vida humana (os cristãos não procuravam a morte, apenas não fugiam dela).

Outra diferença fundamental diz respeito ao incentivo. Os extremistas dão uma ênfase exagerada à recompensa (um paraíso com virgens à sua disposição, etc.), enquanto o estímulo principal no coração dos mártires cristãos era o amor – amor a Deus e a Sua Palavra.

No caso daqueles que se tornam mártires em função de sua luta por bons ideais – políticos, patrióticos ou sociais –, embora seu propósito e intenção sejam nobres, sua cosmovisão é estreita, limitada, já que lutam por aspectos bastante particulares da vida humana. Embora seus esforços sejam louváveis e devamos muito a eles, seu resultado é apenas para esta vida. Seus olhos não alcançam o horizonte da eternidade. Os cristãos, porém, sabem que sua luta ultrapassa as fronteiras do tempo e do espaço e tem implicações eternas e cósmicas. Homens, anjos, demônios e todo o Universo eram testemunhas de seu martírio; e as decisões tomadas ali poderiam ser decisivas para toda a eternidade.

O legado dos mártires – De tudo o que podiam deixar como herança, o maior legado dos mártires foi seu exemplo. Exemplo de fé, coragem, amor e fidelidade a Deus. Foram espetáculo ao mundo, mantiveram sua confissão, derramaram o sangue pela Causa e foram heróis. Heróis que, sem espada, conquistaram reinos; conquistaram o medo, conquistaram a si mesmos, conquistaram o mundo e, acima de tudo, a eternidade. Seus nomes, na maioria, permanecem no anonimato entre os homens, mas no Céu, com certeza, estão na galeria dos grandes vencedores de todos os tempos.

Nossa parte – Por fim, a pergunta mais importante é: E nós? Teríamos a mesma coragem que eles? Se nos confrontássemos com o calibre de um revólver e o dilema de permanecer fiéis a Cristo e morrer ou negá-Lo e viver, qual seria nossa decisão? Se você titubeou em sua resposta, é hora de rever sua vida cristã. Qual tem sido sua real motivação para servir a Cristo? Qual o grau de intimidade que julga ter com Ele? Onde está seu foco? Estão claras em sua mente as quatro questões existenciais (“Quem sou?”, “De onde vim”, “Por que estou neste mundo?” e “Para onde vou?”)? É seu sincero desejo honrar a Deus, quer pela vida ou pela morte? Pense nisso, e que Deus o ajude em sua decisão!

(Eduardo Rueda é editor associado de livros na Casa Publicadora Brasileira)

Bibliografia:

A. J. O’Reilly, Os Mártires do Coliseu (Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2005).
Bíblia Edição de Promessas (São Paulo: Editora King’s Cross).
David Noel Freedman, The Anchor Yale Bible Dictionary (New York: Doubleday, 1996), “martyr, martyrdom”.
Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí: Casa Publicadora Brasileira).
John Fox, O Livro dos Mártires (São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2003).
Lourival P. Baçan, Torturas e Tormentos dos Mártires Cristãos (e-book).
Ralph O. Muncaster, Examine as Evidências (Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2011).
Site . Acesso em: 4 set. 2012.
Thieleman J. van Bracht, O Espelho dos Mártires (Rio Verde: Publicadora Menonita, 2009).

quinta-feira, abril 11, 2013

O que a Bíblia diz sobre a dança?

Uma análise das referências bíblicas à dança revela o fato de que as danças israelitas consideradas como apropriadas eram de natureza litúrgica, sendo acompanhadas por hinos de louvor a Deus. Elas eram geralmente praticadas entre grupos de pessoas do mesmo sexo e sem quaisquer conotações sensuais (ver Êx 15:20; Jz 11:34; 21:21-23; 1Sm 18:6; 2Sm 6:14-16; 1Cr 15:29). A Bíblia fala também de pelo menos duas ocasiões em que pessoas estavam envolvidas em danças inadequadas. A primeira delas foi a dança idolátrica dos israelitas no contexto da adoração do bezerro de ouro (Êx 32:19). A segunda foi a dança da filha de Herodias para agradar o rei Herodes e seus convidados, no banquete em que João Batista foi executado (Mt 14:6; Mc 6:22).

Embora os judeus nos dias de Jesus continuassem praticando a dança (ver Lc 15:25), não encontramos nenhuma evidência no Novo Testamento de que a igreja cristã primitiva perpetuasse tal costume. Há quem sugira que esse rompimento cristão com a dança se deve à degeneração desde já no tempo de Cristo.

Em contraste com as danças litúrgicas do período bíblico, a maioria das danças modernas é praticada sob o ritmo sensual das músicas profanas, que desconhecem completamente o princípio enunciado em Filipenses 4:8: “Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento.”

Grande parte das danças de hoje tem se transformado em um dos maiores estimuladores do sensualismo. Mesmo não se envolvendo diretamente em relações sexuais explícitas, seus participantes geralmente se entregam ao sensualismo mental (ver Mt 15:19, 20), desaprovado por Cristo em Mateus 5:27, 28: “Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela.”

Há aqueles que endossam as danças particulares entre cônjuges unidos pelos laços matrimoniais. Embora tais práticas pareçam inocentes à primeira vista, elas representam o primeiro passo rumo a estilos mais avançados de dança, integrando eventualmente o casal a grupos dançantes. Seja como for, o cristão dispõe hoje de outras formas de integração e entretenimento sociais mais condizentes com os princípios bíblicos de conduta do que a excitação e o sensualismo promovidos pela maioria das danças modernas.

quarta-feira, abril 10, 2013

Apocalipse 17 e o oitavo império

Que significam os símbolos proféticos de Apocalipse 17?

Este artigo analisa os símbolos proféticos de Apocalipse 17 com a proposta de diferenciar a besta escarlate da meretriz bem como da primeira besta de Apocalipse 13:1. O estudo é feito à luz do contexto das sete pragas e do paralelo construído entre o clímax escatológico provido pelos capítulos 13 e 17, paralelo este usado como base para se sugerir uma relação entre a primeira besta e a meretriz, e entre a besta de dois chifres e a besta escarlate e seu oitavo chifre. Em seu contexto imediato, o texto de Apocalipse 17 é considerado como uma espécie de juízo de investigação seguido da execução de sentença sobre a meretriz (Ap 18). A oitava cabeça é distinguida do poder religioso e relacionada com os poderes político-militares.

Introdução

O capítulo 17 é uma das seções mais desafiadoras e, ao mesmo tempo, mais fascinantes do livro do Apocalipse. Um dos anjos que têm as sete taças da ira de Deus (Ap 16) chama o profeta para uma nova sequência de visões, as quais se seguem à narrativa das pragas. O anjo inicia a comunicação com o anúncio: “Mostrar-te-ei o julgamento da grande meretriz” (Ap 17:1).

A identidade da meretriz não tem sido um ponto de discussões tanto quanto a identidade da besta e de seus chifres. Uma vez que uma besta, também de sete cabeças e dez chifres, é descrita em Apocalipse 13:1 e se torna uma figura predominante no livro, a identificação da entidade representada nesse símbolo de Apocalipse 17 oferece grandes dificuldades.

Uma das interpretações mais correntes tem sido que a besta em questão aponta para a mesma entidade representada pela besta de Apocalipse 13, e que seria o império romano, cuja capital foi considerada a “cidade das sete colinas”, como sugere o v. 9. Essa interpretação preterista é abraçada “pela maioria dos exegetas”[1] e resulta numa negação do dom profético na interpretação das visões do grande conflito narradas no livro.

Outra linha de interpretação vê a besta de Apocalipse 17 como símbolo dos poderes políticos mundiais e o oitavo rei como um retorno do sétimo poder, ou seja, de “Roma papal”.[2] Nesse caso, o “oitavo rei” indicaria a fase final de atuação dessa entidade, após a restauração de seus poderes perdidos na revolução francesa, em 1798.

Uma terceira interpretação considera que a besta “escarlate” (Ap 17) se relaciona com o dragão “vermelho” (Ap 12), sendo, portanto, uma referência ao próprio diabo em sua luta contra Deus e Seu povo, por meio de poderes terrenos.[3] Outra visão pontua que a besta “escarlate” deve representar uma “confederação de poderes” militares, seculares e civis em oposição a Deus no clímax do grande conflito.[4]

Ainda uma interpretação mais popular e menos embasada teologicamente também vê a besta como sendo Roma papal e considera que a criação do estado do Vaticano, em 1929, pelo Tratado de Latrão, corresponderia à cura da ferida da besta de Apocalipse 13. Os sete reis representados pelas cabeças da besta seriam sete papas e o “oitavo”, portanto, seria um último papa que guardaria certas relações com seu antecessor.[5]

A multiplicidade de interpretações reflete a complexidade da visão. Um dos desafios está no fato de diversos símbolos apocalípticos serem descritos como “besta” (ver Ap 11:7; 13:1, 11; 17:3). A palavra “besta” (gr. therion) ocorre 38 vezes no livro de Apocalipse, sendo traduzida sempre como “besta”, exceto em 6:8 (“feras”). Apesar de quatro bestas principais serem mostradas a João, em geral as referências à besta são encaradas como sendo àquela de Apocalipse 13:1, a segunda das quatro. Um dos caminhos para solucionar problemas de Apocalipse 17 é tentar distinguir as bestas apocalípticas.

As interpretações que relacionam a besta “escarlate” com a primeira do capítulo 13 (Roma papal) esbarram num problema claro: por fim (17:16), a besta “escarlate” e os “reis da terra” odeiam e destroem a meretriz (o poder religioso romano), o que requer necessariamente uma distinção entre essas duas bestas. A “confederação de poderes seculares”[6] em vez de ser a besta “escarlate” pode representar a própria coalizão da besta e os “reis da terra”. Assim, é necessária uma definição mais objetiva da entidade.

Outro aspecto a ser levado em conta é o contexto das sete pragas no qual se visualiza a meretriz e essa besta. A ideia de juízo é clara nessa seção do livro. Além disso, é preciso relacionar essa visão (Ap 17) com outras visões do livro na busca por elementos simbólicos paralelos.

A visão

Apocalipse 17 tem três partes principais: a fala do anjo ao profeta (v. 1, 2); a visão dos símbolos (v.3-6); e uma nova fala do anjo (v. 7-18). Na primeira, o anjo chama o profeta para ver o julgamento da “grande meretriz” e trata com a identidade da mulher: ela se assenta sobre muitas águas, prostituiu os reis e embebedou os habitantes na terra. A visão descreve os dois símbolos igualmente; e, na segunda fala, o anjo ainda trata com a identidade da mulher, mas dá mais atenção à identidade da besta.

A visão é claramente simbólica, mas as duas falas do anjo devem ser consideradas como explicação e, portanto, como literais e temporais, no sentido de que elas desvendam os símbolos e ocorrem no tempo e nas circunstâncias do profeta.[7] Os tempos verbais usados na visão devem ser considerados. O anjo usa os verbos no passado ao tratar da identidade da meretriz em termos de seus pecados. Com ela se “prostituíram os reis da terra” e se “embebedaram os que habitam na terra” (v. 2). Essa prostituição indica idolatria. Mesmo Jerusalém foi descrita como prostituta por causa de sua idolatria (ver Ez 16, 23, Jr 51).

Na segunda fala, ao tratar com a identidade da besta, o anjo usa verbos nos três tempos fundamentais. Ele diz que “caíram” cinco dos “sete reis”, um “existe” e outro ainda viria (v. 10). Ele também diz que os “dez reis”, que podem ser relacionados com as nações modernas constituídas a partir da queda do Império Romano, ainda não tinham recebido reino, mas receberiam (v. 12). E completa: esses dez reis e a besta “pelejarão” contra o Cordeiro (v. 14) e também “odiarão” a meretriz (v. 16).

Juízo de investigação

Na estrutura do livro, a visão de Apocalipse 17 faz parte do conjunto de visões relativas às sete pragas (Ap 15:5–18:24), que começa com uma cena do santuário celestial[8] em que o término da mediação é indicado (Ap 15:5-8). Essa seção mostra o juízo de Deus sobre os “portadores da marca da besta” (16:2; cf. 14:9, 10) e sobre a “meretriz” (Ap 17 e 18). A vingança divina sobre a “besta”, o falso profeta e o dragão ocorre mais tarde (Ap 19:20, 21; 20:10).

Uma vez que o anjo que fala a João é um dos “que têm as sete taças”, o “julgamento” pode ser uma explicação relativa às pragas. Todas as pragas são narradas em linguagem literal, exceto a sexta (Ap 16:12-16), que fala do secamento das águas do rio Eufrates, o que constitui um pano-de-fundo tirado do Antigo Testamento. Isso sugere que essa praga pode ser o conteúdo a ser explicado com a visão subsequente. Jon Paulien diz que Apocalipse 17 pode ser considerado “uma exegese”[9] de Apocalipse 16:12-16, devendo ser considerados uma unidade.

Assim, na sexta praga, a queda da Babilônia mística é representada pela queda da Babilônia antiga, quando Ciro desviou as águas do Eufrates e surpreendeu Belsazar em seu último banquete (Dn 6).[10]

A sexta praga sugere o desfecho do Armagedom (16:16), uma luta de poderes políticos e religiosos unidos contra os fiéis de Deus. No auge desse conflito, Deus interfere para livrar Seu povo, provocando a queda da Babilônia, o que vai confundir a coalizão político-militar dos oponentes. A queda do poder religioso dessa coalizão pode ser, portanto, o efeito da sexta praga, a qual é explicada em detalhes literais no capítulo 18 (ver 18:2, 8, 9; cf. 17:16).

O julgamento (gr. krima, “condenação”, “sentença”, “punição”) em Apocalipse 17:1 pode ser relacionado ao grande conflito. Os resultados dessa sentença repercutem além da terra, até o Céu. Por isso, após a visão do julgamento da meretriz, o profeta ouve uma voz de “numerosa multidão” no Céu, que diz: “Verdadeiros e justos são os Seus juízos, pois julgou a grande meretriz” e “das mãos dela vingou o sangue dos Seus servos” (Ap 19:1, 2).[11]

Isso permite considerar a visão da queda da Babilônia como uma sequência de juízo de investigação[12] seguido de execução da sentença. A fim de legitimar e justificar a punição da meretriz, diante do Universo, Deus investiga a situação com uma testemunha terrena antes de executar a sentença. Essa atitude divina é comum. Ocorreu no caso de Adão e Eva (Gn 3:9), Caim (4:10), os antediluvianos (6:5), os edificadores de Babel (11:5) e Sodoma e Gomorra (19:1) entre outros.[13]

Assim, o capítulo 17 apresenta um expediente de investigação, com a descrição das obras da meretriz: com o “vinho de sua devassidão” (v. 2) e com as “imundícias da sua prostituição” (v. 4) se “prostituíram” e “embebedaram” os reis e os que habitam sobre a terra. O capítulo 18, por sua vez, descreve a punição: a meretriz se torna covil de “demônios” e de “aves imundas” (v. 2), sofre os flagelos de “morte, pranto e fome” e é consumida no fogo (v. 8).

Visões paralelas

A relação do juízo da meretriz com a sexta praga lança luz adicional ao capítulo 17, no sentido de possibilitar uma mais ampla exploração das entidades retratadas nos símbolos da meretriz e da besta escarlate. Nessa praga, o mundo aparece completamente polarizado entre os inimigos de Deus e o remanescente. Os inimigos integram a coalizão feita pelo dragão, a besta e o falso profeta (16:13) que incorpora também os “reis do mundo inteiro” (16:14). O remanescente é composto pelo grupo que “vigia e guarda” para andar retamente diante de Deus (16:15). Ao guerrear contra o remanescente, os inimigos desafiam o “Deus Todo-Poderoso” (16:14).

Pode ser considerado, portanto, que no Armagedom os inimigos de Deus reúnem os poderes religiosos da terra representados pelo dragão, a besta e o falso profeta (cristãos professos e espiritualistas) e os poderes políticos e militares representados pelos “reis do mundo inteiro”.

Esses dois grupos são representados diversas vezes no Apocalipse, porém mais claramente no contexto do clímax do grande conflito descrito em Apocalipse 13 e 16–17. No capítulo 13, esse grupo opositor é representado por dois símbolos: a primeira besta, então curada de sua ferida mortal, e a besta de dois chifres (ver 13:11-17). No capítulo 17, esse mesmo grupo é representado por dois outros símbolos: a meretriz e a besta escarlate. Do capítulo 13 para os 16–17, há uma progressão em que a entidade representada pela primeira besta torna-se um poder apenas religioso e amplia seu espectro com a incorporação do “espiritismo” e “protestantismo”,[14] como sugerido em 16:13; por sua vez, a besta de dois chifres passa a incorporar “os reis da terra” (16:14; 17:12, 16).

Essa ampliação na descrição das entidades justifica uma mudança nos símbolos. De forma que, no capítulo 17, a “besta de dez chifres” é mostrada na figura da “meretriz”, e a “besta de dois chifres” é substituída por outro símbolo (a besta escarlate ou oitavo rei). Essa troca de símbolos é comum na profecia apocalíptica, quando se deseja ampliar ou mudar o espectro da revelação. Em Daniel 2, uma sequência de impérios (Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma e Roma papal) é representada pela estátua de ouro, prata, bronze, ferro e barro. A mesma sequência é retratada em Daniel 7 por quatro animais: leão, urso, leopardo e o quarto animal. Já em Daniel 8, os três últimos poderes são representados por um carneiro, um bode e um “chifre pequeno”.

Assim, considerando o contexto comum do clímax do grande conflito e do Armagedom, em que os inimigos de Deus assumem essa composição político-religiosa, os capítulos 13 e 16–17 de Apocalipse podem ser postos em paralelo, de modo que a “primeira besta” está para a “meretriz”, assim como a “besta de dois chifres” está para a “besta escarlate”, consideradas as mudanças na configuração das entidades em questão e as ampliações na descrição delas.

Identidade da besta

Em seus aspectos visuais, a besta de Apocalipse 17 é diferenciada da primeira besta. Ela é “escarlate” (17:3), enquanto que a primeira besta (13:2) tem semelhança com leopardo, urso e leão (símbolos de Babilônia, Pérsia e Grécia, em Dn 7). Deve-se notar também que o dragão é “vermelho” (12:3) como a besta escarlate, e, da mesma forma que ela, tem dez chifres e sete cabeças. Assim, é sugerida uma relação entre a besta do capítulo 17 e o dragão.[15] No entanto, isso não esgota o símbolo, já que animais, bestas e chifres representam poderes políticos seculares (ver Dn 7:17, 24, 8:20, 21).

O anjo explica ao profeta que as sete cabeças são “sete montes” e são também “sete reis” (v. 9). A interpretação de que os “sete montes” são as sete colinas de Roma contraria a lógica de que a besta e a meretriz representam realidades distintas. A palavra grega oros deve ser traduzida por “montes” ou “montanhas”, mas a NVI a traduz por “colinas”. Johnson afirma que, neste caso, “uma exegese prévia influenciou a tradução”.[16] Os sete “montes” devem ser considerados como na mentalidade hebraica, ou seja, como reinos. Por meio de um paralelismo, Isaías usa de forma intercambiável “montes” e povo/nação: “Porque de [a] Jerusalém sairá o [b] restante, e do [a’] monte Sião, o que [b’] escapou” (Is 37:32; ver também Sl 48:2; Jr 51:25, Dn 2:35; 9:20, Zc 4:7). O mesmo ocorre com o termo “rei”, que os judeus usavam como equivalente de “reino” (ver Dn 7:17; 8:21, 23).

Assim, “montes” e “reis” devem apontar para reinos ou impérios representados nas cabeças da besta. Contrariamente à relação entre os “montes” e a igreja romana, Johnson argumenta que esses símbolos “pertencem à besta [poder político] e não à meretriz [poder religioso]”.[17] Como a explicação do anjo (v. 10) é feita da perspectiva temporal do profeta, ou seja, no primeiro século, cinco deles já tinham se passado (Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia), um existia (Roma) e o sétimo ainda viria (Roma papal).

A afirmação do anjo de que o sétimo reino (Roma papal) teria de durar “pouco” (1.260 anos!) pode ser entendida da perspectiva da garantia da vitória dos fiéis de Deus alcançada na cruz e não do ponto de vista do tempo cronológico. O adjetivo “pouco” (gr. olígon, v. 10) é usado em Apocalipse, ao se afirmar que o diabo, após a cruz, sabia que tinha “pouco tempo” (olígon kairon, 12:12). Por outro lado, ao falar que o dragão será solto após o milênio, mas por “pouco tempo”, João usa mikron krónon (20:3), indicando um tempo cronometrado.[18]

Na fala ao profeta, o anjo se refere à besta como algo que “era e não é, está para emergir” (v. 8, 11). A relação feita entre essa besta escarlate do capítulo 17 e a besta semelhante a leopardo, urso e leão (13:1) resulta de se interpretarem essas palavras como se proferidas pelo anjo ao profeta no período posterior a 1798, quando Roma papal tinha perdido seus poderes políticos com a revolução francesa, mas com a previsão de recuperá-los no fim dos tempos. No entanto, sendo que as duas bestas devem representar entidades diferentes, a fala do anjo pode não tratar com eventos temporais, mas ser vista como uma paródia em relação à pretensão do dragão, com quem essa besta se relaciona, de ser como Deus, “aquele que é, que era e que há de vir” (Ap 1:4, 8; 4:8), o único “Eu Sou” (Êx 3:14).

O oitavo rei

Em Apocalipse 17:11, o anjo prossegue a descrição da identidade da besta e acrescenta uma informação além da visão recebida pelo profeta. Ele afirma a emergência de um “oitavo” elemento, de natureza semelhante aos reis/impérios representados pelas cabeças da besta: “E a besta [...] também é ele, o oitavo rei, e procede dos sete” (v. 11). Nesse ponto, o texto grego diz, literalmente: “ela [a besta] mesma é o oitavo”. A palavra rei é acrescentada em algumas versões, mas não ocorre no grego.

O fato de o anjo dizer que cinco eram passados, um existia e o sétimo viria (v. 10) sugere uma relação consecutiva entre os “reis” bem como em relação a esse oitavo elemento. Além disso, ele acrescenta que o oitavo “procede” (gr. ek, denota “procedência”, “origem”) dos sete. Nesse caso, se os “reis” são os impérios mundiais, um oitavo império, proveniente dos sete, é previsto.

Retomando o paralelo estabelecido anteriormente, em Apocalipse 13:11 a besta de dois chifres aponta para o império americano, cuja origem e procedência é europeia. Nesse caso, o “oitavo rei” seria o último império a exercer poder sobre os fiéis de Deus.[19]

A relação entre o “oitavo rei” e o império americano, como a entidade por trás da besta de dois chifres, ainda pode ser ampliada à luz do cenário escatológico provido por Apocalipse 13 e 16–17. A besta escarlate “leva” (17:7; gr. bastazw, “carregar”, “conduzir”) a meretriz na qual esta está “montada” (v. 3). Em Apocalipse 13:14, a besta de dois chifres faz uma imagem à primeira besta e restaura sua ferida. Isto é, em Apocalipse 13, a segunda besta se coloca à disposição e a serviço da primeira.

A besta escarlate, que também é o oitavo rei (17:11), lidera os “dez chifres” ou “dez reis” (nações modernas descendentes dos povos bárbaros que tomaram o Império Romano) em sua investida contra o Cordeiro, no Armagedom (17:14). Os que “habitam na terra” (13:14) e os “reis do mundo inteiro” (16:14) são liderados pela besta de dois chifres contra Deus e Seu povo. Nesses dois cenários, há a previsão de uma “grande coalizão” de poderes seculares, a serem liderados pela besta de dois chifres (Ap 13) e pela besta escarlate (Ap 17).

No entanto, no auge do conflito, o clímax da proclamação das três mensagens angélicas (Ap 14:6-10) por parte do remanescente escatológico, batizado na chuva serôdia, provocará o desmascaramento da meretriz Babilônia e contribuirá para sua consequente queda. As “águas” que se “secam” (v. 17:15), a exemplo do rio Eufrates desviado por Ciro por ocasião da queda de Belsazar, apontam para a retirada do apoio das nações (13:14; 16:14; 17:12, 13) à causa da Babilônia mística. As nações outrora unidas em favor da Babilônia não só deixarão de apoiá-la, mas a odiarão e destruirão (17:16). Nesse caso, a ira de Deus sobre ela será executada por meio de seus próprios aliados que também são inimigos de Deus. No Antigo Testamento, Deus usou a Babilônia antiga para executar Seu juízo sobre Judá (2Rs 24:1-20; Jr 20:4), e a Pérsia, para se vingar de Babilônia (Is 13:19; 34:14).

Diante das considerações feitas, algumas conclusões podem ser sugeridas quanto à besta e ao oitavo rei de Apocalipse 17. Uma vez que se diz que a besta é “também” o oitavo, conclui-se que ela é também cada um dos impérios representados por suas sete cabeças. A besta escarlate, nesse caso, pode representar o poder imperial que, ao longo da história, se opõe a Deus.[20] Sendo que ela está relacionada ao dragão vermelho (12:3), os impérios mundiais podem ser vistos como a materialização do governo de Satanás no mundo. “Cada cabeça da besta é uma encarnação parcial do poder satânico que governa o mundo por um período.”[21] Mesmo assim, eles pretendem ser permanentes e invariavelmente se opõem ao povo que segue a vontade de Deus.

Todos os impérios afrontam a Deus, de alguma forma. O faraó do Egito questionou Moisés: “Quem é o Senhor para que Lhe ouça a voz e deixe Israel ir?” (Êx 5:2). O rei assírio Senaqueribe cercou Jerusalém e desafiou o “Senhor”, afirmando que, assim como os deuses das nações que tinha conquistado, o Senhor não poderia livrar Judá de suas mãos (2Rs 18:13, 30-35). Nabucodonozor ameaçou os judeus, dizendo: “Quem é o deus que poderá livrar-vos das minhas mãos” (Dn 3:15). Na Pérsia, Hamã quis exterminar os judeus porque eles seguiam as leis do Senhor (Et 3:8). O selêucida Antíoco matou judeus e profanou o templo. Roma crucificou Cristo e destruiu Jerusalém. Acerca de Roma papal, se indagaria: “Quem é semelhante à besta?” (Ap 13:4). Por sua vez, o poder americano previsto em Apocalipse 13:11 fará com que a Terra e seus habitantes “adorem” a primeira besta (13:12) e condenará à morte todos os que não fizerem isso (13:15).

No panorama escatológico do Apocalipse, o último poder político-militar de alcance global (13:12) a assumir atitudes imperiais como os sete anteriores é o império americano, que é “procedente” da Europa e, portanto, tem uma relação com os anteriores em termos de origem. Sendo que as cabeças da besta escarlate representam sete impérios mundiais (Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma e Roma papal), a oitava cabeça pode ser, portanto, o poder americano, conforme representado pela besta de dois chifres em Apocalipse 13:11.

Acerca dos impérios, não só o oitavo “procede” dos sete, mas todos eles guardam certas relações, sugerindo que são, ao longo da história, um poder comum em oposição a Deus. É um poder comum no sentido de que Satanás exerce o poder por trás de cada cabeça da besta. Por isso, justificaria serem representados por uma mesma besta de sete cabeças. “A imagem de uma besta de sete cabeças representa uma besta que vive, morre e torna a viver sete ou oito vezes”.[22] A expressão “era e não é, está para emergir” (17:8) pode ser vista também nessa perspectiva.


O chamado “Grande Selo dos Estados Unidos”, estampado na cédula de um dólar é uma evidência dessa relação entre os impérios. O selo representa a integração de valores culturais dos impérios egípcio, grego, persa, babilônico e romano no império americano. Seus principais elementos são: (1) a pirâmide truncada egípcia muito usada pela maçonaria; (2) o olho da Providência, ou o olho de Hórus, deus solar filho de Osíris e Ísis, na mitologia egípcia; (3) a águia de cabeça branca, que era o pássaro de Zeus na mitologia grega e representava a descida do deus à Terra na crença egípcia; (4) as frases “annuit coeptis”, “novus ordo seclorum” e “e pluribus unum”, tiradas de Virgílio, poeta romano.[23] O desenho da águia, no selo, faz referência ao chamado “Faravahar”, uma efígie persa que simbolizava a luz celestial em torno dos reis, heróis e santos da Pérsia.

As culturas imperiais, portanto, compartilham valores, símbolos, ideais, mitos, crenças e, sobretudo, uma visão comum de seu pretenso papel na manutenção da ordem do mundo.[24]

A meretriz

A meretriz não é objeto de grandes disputas por parte dos intérpretes, pois a mulher pura aponta para a igreja verdadeira tão claramente quanto a vulgar revela a religião corrompida. No entanto, se Apocalipse 17 e 18 apresenta um juízo de investigação seguido da execução de sentença, e sendo que em 18:24 se diz que a meretriz é culpada pelo sangue “de profetas, de santos e de todos os que foram mortos sobre a terra”, ela já devia existir antes da era cristã.

Além disso, observando os tempos verbais na visão, o anjo diz a João que com ela se “prostituíram” os “reis da terra” (v. 2) e com seu vinho se “embebedaram” os que “habitam na terra” (v. 2). Os verbos conjugados no passado, no tempo de João, apontam para a relação da meretriz com os impérios que tinham existido até então (do Egito a Roma).

João viu que a meretriz estava “montada” na besta escarlate (17:3), e o anjo disse que ela está “sentada” sobre muitas águas (17:1, 15) as quais representam povos e nações (17:15). Ela também está “sentada” nos sete montes, que são os impérios. O verbo grego usado nesses versos é o mesmo: kathemai. Para Johnson, “Babilônia é encontrada onde quer que haja engano satânico” e representa “a cultura do mundo separado de Deus”.[25] A meretriz, nesse caso, revela uma religião perversa que esteve difundida em todos os impérios, embora tenha sua manifestação mais plena e final na Babilônia mística dos últimos dias.

O juízo divino traz à memória todos os profetas e santos mortos ao longo da história e os vinga sobre a meretriz, cujo incêndio faz prantear os próprios “reis da terra” (18:9, 10, 18).

O anjo diz que a meretriz embebedou os que “habitam na terra” com seu vinho. Ora, o vinho de Babilônia, entre outras coisas, aponta para a santidade do dia do Sol e a “imortalidade da alma”, a mentira primordial.[26]

O culto ao Sol e a crença na imortalidade da alma são encontrados em todos os impérios, desde o Egito. “O culto do Sol era difundido e sua deificação foi uma fonte de idolatria em cada parte do mundo antigo”.[27] Richard Rives afirma que egípcios, assírios, babilônios, medos e persas, gregos e romanos foram todos adoradores do Sol.[28] A proibição feita por Moisés atesta da atração desse culto naquele no tempo (Dt 4:19). No Egito, o extenso e dispendioso ritual de embalsamamento mostra a vitalidade da crença na imortalidade nesse primeiro império, a qual reporta ao Éden.[29] Essas duas heresias funcionaram ao longo da história como uma arma eficaz da meretriz para seduzir reis e povos e para perseguir os fiéis de Deus.

Conclusões

Assim, as visões narradas em Apocalipse 17 e 18 podem ser vistas como revelações adicionais e explicativas sobre a sexta praga e tratam com a queda da Babilônia. Há uma sequência de juízo de investigação (17) seguido de execução da sentença (18). A meretriz e a besta escarlate parecem revelar entidades diferentes constituintes do grupo dos inimigos de Deus no clímax do grande conflito, contra os quais Deus executa juízos. Após a investigação retratada no capítulo 17, o Apocalipse mostra a execução da sentença divina primeiramente sobre a meretriz (18:20), depois sobre a besta (escarlate) e o falso profeta (19:20) e, por fim, sobre o dragão (20:10).

A relação da besta escarlate com o dragão vermelho (12:3) sugere que o diabo é o poder por trás de todos os impérios que, ao longo da história, se opuseram a Deus e a Seu povo. O paralelo entre o clímax escatológico descrito nos capítulos 13 e 16–17 favorece a comparação entre a primeira besta e a meretriz, bem como entre a besta de dois chifres e a besta escarlate ou oitavo rei. A oitava cabeça pode ser vista como um poder político-militar escatológico que, sucedendo as sete primeiras, seria o poder americano.

A meretriz é culpada do sangue de santos e profetas (18:24) de toda a história, e o juízo de investigação retoma seus pecados desde o primeiro império, o Egito. O vinho com que ela embriagou os povos da Terra revela as duas heresias (imortalidade incondicional e culto do Sol/domingo) as quais atravessam todos os impérios.

Essa visão do poder imperial e religioso que, ao longo da história, se opôs a Deus, sendo que um império herda e mantém valores e conceitos dos anteriores, mostrando-os conectados um ao outro, torna bastante apropriadas as palavras de Daniel a Nabucodonosor, acerca da pedra que caiu nos pés da estátua, sendo então “esmiuçado o ferro, o barro, o bronze, a prata e o ouro, os quais se fizeram como a palha”, e “o vento os levou, e deles não se viram mais vestígios”. Mas “a pedra que feriu a estátua se tornou em grande montanha [reino], que encheu toda a terra” (Dn 2:35, 45).

O reino de Cristo, ao ser estabelecido, não herdará nada dos anteriores, mas destruirá para sempre todas as obras humanas que os diferentes impérios compartilharam ao longo da história.

(Vanderlei Dorneles, doutor em Ciências, é editor na Casa Publicadora Brasileira e professor no Salt-Iaene, na Bahia)

Referências:

1. Alan F. Johnson, in ed. Frank E. Gaebelein, The Expositor’s Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1981), p. 554.
2. Ver Ranko Stefanovic, Revelation of Jesus Christ (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2002), p. 515, 516; Francis D. Nichol, ed. Seventh-day Adventist Bible Commentary (Washington, DC: Review and Herald, ed. rev. 1980), p. 854-856.
3. Ekkehardt Mueller, “A Besta de Apocalipse 17: Uma Sugestão”, in Parousia: Revista do Seminário Latino-Americano de Teologia, Unasp, Engenheiro Coelho, SP, 1º semestre de 2005, p. 39.
4. Jon Paulien, Armageddon at the Door (Hagerstown: Review and Herald, 2008), p 136, 212; e Nichol, p. 851.
5. Ver Paulien, 215, 216.
6. Paulien, p. 212.
7. Paulien, p. 214, 215.
8. Richard Davidson diz que “todo o livro [do Apocalipse] é estruturado pela tipologia do santuário” (Richard M. Davidson, “Sanctuary Tipology”, in ed. Frank B. Holbrook, Symposium on Revelation: Introductory and Exegetical Studies, Book 1 (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 1992), p. 112). Ver também Kenneth Strand, “The Eight Basic Visions”, in ed. Frank B. Holbrook, Symposium on Revelation: Introductory and Exegetical Studies, Book 1 (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 1992), p. 35-49.
9. Paulien, p. 208.
10. Jon Paulien argumenta que “o Apocalipse não pode ser entendido sem contínua referência ao AT”, pois ele é um “perfeito mosaico das passagens do AT”. As recorrentes referências ao AT no Apocalipse indicam que ele é a principal chave para abrir o significado dos símbolos do livro. “O AT provê os meios para “decodificar a mensagem do Apocalipse” (Jon Paulien, “Interpreting Revelation’s Symbolism”, in ed. Frank B. Holbrook, Symposium on Revelation: Introductory and Exegetical Studies, Book 1 [Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 1992], p. 80).
11. A meretriz de Apocalipse 17 reproduz a figura de Jezabel: ambas praticam prostituição (2Rs 9:22; Ap 17:2, 4, 5); derramam sangue de santos e profetas (2Rs 9:7; Ap 17:6; 18:20, 24); e têm a carne comida (1Rs 21:23; 2Rs 9:36; Ap 17:16).
12. Paulien entende que “o santuário do AT e seus rituais exercem uma função estrutural na organização do livro do Apocalipse” (Jon Paulien, The Deep Things of God [Hagerstown, MD: Review and Herald, 2004], p. 124).
13. Ver Gerhard F. Hasel, “Juízo Divino”, in Raoul Dederen, Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 908-911, 935.
14. Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1988), p. 588-589; ver Paulien, 2008, p. 160-165, 173.

15. A figura do “dragão”, como representação das forças opositoras a Deus, é bem conhecida na Bíblia. Curiosamente, ele é relacionado ao faraó do Egito e a Nabucodonosor da Babilônia, dois impérios representados nas cabeças da besta escarlate (Ap 17). No êxodo, Deus esmagou a cabeça de tannyin (Sl 74:13; 91:13), que é traduzido por “monstro marinho” (ARA), “dragão” e “serpente”. Segundo os profetas, Deus esmagou tannyin no êxodo (Is 51:9) e no retorno do cativeiro de Babilônia (Jr 51:34; Is 52:11) e, no dia do Senhor, Ele esmagará tannyin (Is 27:1) definitivamente. No proto-evangelho, o Filho da mulher esmagaria a cabeça da “serpente” (Gn 3:15). No Apocalipse: a salvação é consumada quando o “dragão” (gr. drákon) que foi expulso do Céu (12:7-9) e perseguiu a mulher (12:17) for derrotado por Cristo no “lago de fogo” (20:10). A LXX usa o substantivo grego drákon para traduzir o hebraico tannyin.
16. Johnson, p. 559
17. Johnson, p. 560.
18. Ver 1 Pedro 1:6, que também usa olígon no sentido de tempo não cronometrado.
19. Sobre o desenvolvimento da interpretação adventista acerca da besta de dois chifres de Apocalipse 13:11, ver Vanderlei Dorneles, O Último Império (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 33-52.
20. Stefanovic, p. 515.
21. Robert L. Thomas, Revelation 8–22: An Exegetical Commentary (Chicago, IL: Moody Press, 1995), p. 292.
22. Paulien, p. 211.
23. Ver David Ovason, The Secret Symbols of Dollar Bill (New York, NY: Harper Collins, 2004).
24. Ver Dorneles, O Último Império, p. 89-115; ver também Manly P. Hall, The Secret Destiny of America (New York: Penguin, 2008).
25. Johnson, p. 554.
26. Ellen G. White, Mensagens Escolhidas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1988), vol. 2, p. 68, 118.
27. William T. Olcott, Sun Lore of All Ages (New York: Putnam’s Sons, 1914), p. 142.
28. Richard Rives, Too Long in the Sun (Charlotte, NC: Partakers, 1999).
29. Ver Samuele Bacchiocchi, Crenças Populares (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 50-60.

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