Quem são os 144 mil mencionados no livro do Apocalipse?
Um dos temas que mais intrigam os
adventistas e os cristãos em geral são os 144 mil do Apocalipse. Muitos não
compreendem nem mesmo os aspectos mais básicos em relação a eles – se o número
é literal ou simbólico, se eles fazem parte da chamada “grande multidão” e,
principalmente, quem são eles. Em grande parte, isso se deve a um conselho de
Ellen White, de se evitar discussões inúteis sobre esse assunto, assim como
outros não essenciais para a salvação.[1] No entanto, ela mesma citou esse
grupo dezenas de vezes em seus escritos, relacionando-o a acontecimentos
cruciais para o povo de Deus no tempo do fim, como o selamento e a grande
tribulação. Tamanha foi a importância desse grupo em seu ministério profético,
que os 144 mil foram representados logo em sua primeira visão, sobre o povo do
advento.[2]
Apesar de haver escrito tanto sobre
os 144 mil, Ellen White nunca os definiu claramente. A própria Igreja Adventista
até hoje não tem uma posição oficial abrangente sobre o assunto. Embora o
Instituto Bíblico de Pesquisas, órgão oficial da Associação Geral, interprete o
número como simbólico[3], a igreja não determina oficialmente essa compreensão
como uma crença.[4] E, apesar de o Seventh-day
Adventist Commentary declarar que, até à época de sua reedição (1980), os
adventistas favoreciam a interpretação de que os 144 mil são um grupo especial
do povo de Deus nos últimos dias – um grupo à parte da grande multidão[5] –,
essa também não era nem é até hoje uma posição oficial da igreja. O assunto
ainda está em estudo, e o que se enfatiza não é quem são os 144 mil, mas como
ser parte deles, como alcançar a salvação.[6]
Por outro lado, se Ellen White
condenou discussões inúteis, também encorajou os adventistas a não desistir de
buscar conhecer cada vez mais a Bíblia e as profecias.[7] Em uma de suas mais
fortes declarações, ela afirmou: “A história da igreja nos ensina que o povo de
Deus não deve ficar estereotipado em suas teorias da fé, mas preparar-se para
nova luz, para abrir a verdade revelada em Sua Palavra.”[7]
Portanto, os ensinos e profecias da
Bíblia podem e devem ser compreendidos cada vez mais à medida que o tempo passa
e os estudos progridem. Aspectos como a justificação pela fé, que Ellen White
não compreendia inicialmente, foram entendidos por ela décadas depois. Da mesma
forma, partes da Bíblia que ela não entendia, pela falta de estudos mais
profundos à época, hoje podem ser mais bem compreendidas (assim como Daniel não
entendia suas próprias profecias, mas hoje podemos compreendê-las, ver Daniel
12:4).
Avanços
Nas últimas décadas, diversos
estudos envolvendo os 144 mil têm sido divulgados por meios oficiais da igreja,
como o Instituto Bíblico de Pesquisas da Associação Geral (BRI, sigla em
inglês), lançando mais luz sobre o assunto. Uma importante coleção de materiais
sobre Daniel e Apocalipse lançada no início dos anos 1990 é a série Daniel
& Revelation Comitee Series, conhecida como “Darcom”. Num dos volumes da coleção,
um capítulo escrito por Beatrice Neall, “Sealed Saints and the Tribulation”
(“Os Santos Selados e a Tribulação”) trata diretamente dos 144 mil.[8] Nesse
estudo, um ponto especial pode ser destacado: a relação entre os 144 mil e a
“grande multidão” de Apocalipse 7. Em vez de enfatizar as diferenças entre
ambos os grupos, a autora apresenta diversas “marcas de identificação” entre
eles – evidências de que podem constituir um só grupo. Assim como ela, outros
acadêmicos adventistas, como Ekkehardt Mueller, um dos diretores associados do
BRI, também favorecem essa posição.
Os 144 mil são apresentados em duas
seções, em Apocalipse: 7:1-8 e 14:1-5. No capítulo 7, o relato sobre os 144 mil
é seguido pela descrição de uma multidão inumerável. A primeira grande evidência
de que os 144 mil e a grande multidão podem ser o mesmo grupo é a própria
estrutura do livro do Apocalipse. O capítulo 7 é um hiato, um parêntese entre o
sexto e o sétimo selos. Ele responde a uma pergunta básica feita pelos ímpios
no sexto selo.
Diante da expectativa da vinda de
Jesus, os ímpios clamam aos montes e aos rochedos: “Caí sobre nós e
escondei-nos da face dAquele que Se assenta no trono e da ira do Cordeiro,
porque chegou o grande dia da ira dEles; e quem é que pode suster-se?” (Ap 6: 16,
17). Parafraseando, “quem poderá ficar de pé quando Cristo voltar?” Em 7:9, a
resposta é direta: “Depois destas coisas, vi e eis grande multidão que ninguém
podia enumerar [...] em pé diante do trono e diante do Cordeiro” (v. 9). Mais à
frente, no livro, os 144 mil são vistos em pé junto ao Cordeiro, no monte Sião
(Ap 14:1).
Os 144 mil e a grande multidão são
descritos em momentos diferentes, como os únicos que podem ficar de pé diante
de Cristo, em Sua vinda à Terra. Isso deixa claro que ambos são o retrato do
povo de Deus que estará vivo por ocasião da volta de Jesus. A questão é: Eles
são dois grupos ou um só?
Um grupo
Assim como Beatrice Neall, Ekkehart
Mueller, em seu artigo “The 144,000 and the Great Multitude”[9] (“Os 144 mil e
a Grande Multidão”), apresenta argumentos convincentes em favor de que ambos os
grupos são um só: (1) João ouve o número dos selados (144 mil), mas, na
sequência, contempla uma grande multidão (7:4, 9), assim como em 5:5, 6 ele
tinha ouvido sobre um Leão, mas viu um Cordeiro; (2) no capítulo 7, os 144 mil
são os justos do tempo do fim descritos ainda na Terra; a grande multidão é um
retrato desse povo já no Céu; (3) os 144 mil são a descrição do povo de Deus no
tempo do fim, que vai passar pela grande tribulação (representada pela
liberação dos ventos); a grande multidão são os que já passaram pela tribulação
(7:3, 14); (4) os 144 mil são os selados antes da liberação dos ventos (7:3); a
grande multidão logicamente precisou ser selada antes de passar pela grande
tribulação (7:14).[10]
O selamento e a grande tribulação
são as principais marcas de identificação, conforme Neall chama, entre os 144
mil e a grande multidão. Ambas as marcas dão fundamentos para se enxergar
semelhanças, não diferenças, entre os grupos. Os dois grupos foram selados e
passaram pela tribulação. Não é à toa que, no livro O Grande Conflito, Ellen White se refira aos 144 mil, citando
versículos referentes diretamente à grande multidão (Ap 7:14-16).[11]
Assim, resta uma dúvida: O que
poderia diferenciar os 144 mil da grande multidão? Haverá dois grupos de justos
vivos quando Cristo voltar? Alguns argumentam que os 144 mil são as “primícias”
(Ap 14:4), um grupo especial em relação à grande multidão. No entanto,
“primícias” pode se referir aos 144 mil como os primeiros frutos da “colheita
universal de redimidos de todas as eras”. Diante disso, Mueller conclui que “é
melhor entender que os 144 mil e a grande multidão são o mesmo grupo, visto por
diferentes perspectivas”. Para ele, os 144 mil representam um “termo
simbólico”, enquanto a grande multidão “descreve a realidade”. [12]
O simbolismo dos 144 mil pode
encontrar sua realidade na grande multidão em diversos outros aspectos, entre
eles: (1) origem étnica – João ouviu de um grupo composto por 12 tribos de 12
mil filhos de Israel, mas viu uma multidão de tribos (7:9); (2) número – João
ouviu um número exato, mas viu uma multidão inumerável (7:4, 9); (3) pureza –
os 144 mil são descritos como puros, sem mancha, assim como a grande multidão,
vestida de vestiduras brancas (14:4. 5; 7:14); (4) proximidade ao Cordeiro – os
144 mil “seguem o Cordeiro para onde quer que vá”, assim como a grande multidão
serve de “dia e de noite” diante do trono e do Cordeiro (14:4; 7:15, 17); (5)
serviço – os 144 mil são “servos de Deus”, e a grande multidão também “serve a
Deus” (7:3, 15).
Hans K. LaRondelle, eminente
teólogo adventista, apontou os 144 mil como o povo remanescente de Deus no
tempo do fim, fiéis de todas as nações que “guardam os mandamentos de Deus e
têm a fé em Jesus” (Ap 14:12). Segundo LaRondelle, eles enfrentarão a crise
final promovida no mundo pelo anticristo. Ou seja, ele enxerga nos 144 mil um
simbolismo do remanescente que passará pela grande tribulação.[14]
Diante das evidências apresentadas,
torna-se ainda mais claro que o número 144 mil é simbólico. O próprio contexto
das passagens indica isso: tanto no capítulo 7:1-8, como em 14:1-5, a linguagem
diretamente ligada aos 144 mil tem forte simbolismo – ventos, quatro anjos,
quatro cantos, selamento na testa, homens virgens, doze tribos de Israel (a
maioria extinta, além de a lista não corresponder à original dos doze
patriarcas), etc. É mais coerente entender os 144 mil das 12 tribos de Israel como
que simbolizando a unidade, perfeição, completude e vastidão da igreja de Deus.[15]
Portanto, é possível concluir que
os 144 mil simbolizam a grande multidão – a multidão inumerável que atravessará
a crise final da Terra. Há razões para se acreditar que Jesus não virá para
buscar um pequeno grupo de remidos, nem dois grupos de justos vivos na Terra,
mas um remanescente fiel composto por uma multidão inumerável de todas as
nações. Virá buscar um povo que terá passado por muitas dificuldades, mas que
contou com a proteção de um Deus que lhes enxugará pessoalmente “toda lágrima”
(Ap 7:17). Mais importante ainda é nos prepararmos para pertencer a esse grupo.
(Diogo
Cavalcanti, editor na Casa Publicadora Brasileira)
Referências:
1.
White, Ellen G. Eventos Finais, p.
268.
2. White, Ellen G. Primeiros Escritos, p. 15-23.
3. Pfandl, Gerhard. “Information on the Seventh-day Adventist Reform
Movement”. Biblical Research Institute. Num ponto desse artigo, a crença
reformista de que 144 mil é um número literal é posta em contraste com a crença
adventista do sétimo dia de que o número é simbólico. Disponível em:
http://www.adventistbiblicalresearch.org/Independent%20Ministries/SDA%20Reform%20movement.htm
4. Nichol, F. D. (Ed.). Seventh-day
Adventist Bible Commentary, v. 7. Hagerstown, MD: Review and Herald, 1980.
p. 783.
5. Ibid., p. 785.
6. Ibid., p. 783.
7. White, Ellen G. Caminho a Cristo, p. 112. Conselhos Sobre a Escola Sabatina, p.
23.
8. White, Ellen G. Cristo
Triunfante, p. 317.
9. Frank Holbrook (ed.). Beatrice Neall. “Sealed Saints and the
Tribulation”. Symposium on Revelation – Book I. Daniel & Revelation
Committee Series. Hagerstown: Review and Herald, 2000. p. 245-278.
10. Mueller, Ekkehardt. “The 144,000 and the Great Multitude”. Biblical
Research Institute. Disponível em: http://www.adventistbiblicalresearch.org/documents/144%2C000greatmultitude.htm
[1]1.
Ibid.
[1]2.
White, O Grande Conflito, 648, 649.
[1]3. Mueller. Ibid.
[1]4. LaRondelle, Hans K. “Prophetic
Basis of Adventism”. Adventist
Review, 1° de junho-20 de julho, 1989. Disponível em:
http://www.adventistbiblicalresearch.org/documents/Prophetic%20Basis%20Adventism.htm
[1]5.
Neall, Ibid. 262, 269.