sexta-feira, setembro 21, 2012

Quão bom é Deus?

Seria o Deus do Antigo Testamento carrasco e sedento por sangue?

“Ouviste o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque Ele faz nascer o Seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos” (Mt 5:43, 44).

“Quando o Senhor, teu Deus, te introduzir na terra a qual passas a possuir, e tiver lançado muitas nações de diante de ti, os heteus, e os girgaseus, e os amorreus, e os cananeus, e os ferezeus, e os heveus, e os jebuseus, sete nações mais numerosas e mais poderesosas do que tu; e o Senhor, teu Deus, as tiver dado diante de ti, para as ferir, totalmente as destruirás; não farás com elas aliança, nem terás piedade delas” (Dt 7:1-3).

Amor e destruição. Duas palavras que sumarizam os textos acima. O mais intrigante é que essas duas passagens descrevem o mesmo Deus. Alguns cristãos, no passado e atualmente, numa tentativa quase desesperada para solucionar essa gritante contradição, sugeriram que o Deus do Antigo Testamento é diferente dAquele que encontramos nas páginas do Novo Testamento. Enquanto o primeiro é caracterizado como violento, sanguinário e mau, o segundo é apresentado como amoroso, perdoador e bondoso.

Mas não são apenas determinados cristãos que veem o Deus de Israel como um Deus mau. Em anos mais recentes, alguns ateus têm se valido de certas partes das Escrituras hebraicas para reprovar o caráter de Deus, como é apresentado ali. Veja, por exemplo, o que o acadêmico de Oxford, Richard Dawkins, escreveu a respeito de Yahweh:

“O Deus do Velho Testamento é provavelmente o mais desagradável dos seres em toda a ficção. O ciúme e o orgulho do mesmo o leva a um mimado e imperdoável controle dos mais fracos com evidente sede de sangue e desejo de limpeza racial. Um machista, homofóbico, infanticida, genocida, filicida, pestilento, megalomaníaco, sadomasoquista, caprichoso e malevolente fanfarrão.”[1]

Deus é tudo isso? Para Dawkins, sim! Ele seria capaz de adicionar uma passagem bíblica em cada uma dessas descrições. A pergunta que surge não é outra senão: Como entender essas passagens do Antigo Testamento que dão margem para interpretações como a do cientista de Oxford? Abaixo, veremos dois exemplos de passagens relacionadas com a escravidão no território de Israel e a destruição dos cananeus.[2]

Leitura equivocada

Um erro grave cometido por Dawkins – e também por muitos cristãos atuais – é ler o Antigo Testamento como se ele tivesse sido escrito no século 21 e para nós, ocidentais. Ao lermos o texto bíblico, precisamos nos lembrar de que ele foi escrito no Oriente Médio, no 2º e 1º milênios antes de Cristo. Acredite, isso resolve muitos problemas! Em lugar de comparar leis e práticas de Levítico, Números e Deuteronômio com leis atuais, compare com os códigos de leis dos povos daquela região e época.

Ilustraremos isso com o caso da escravidão. Essa foi a primeira lei que Deus deu aos israelitas, quando eles saíram do Egito (cf. Êx 21:1-11). Na lei mosaica, sequestrar alguém para ser vendido como escravo era um crime punido com pena capital (Êx 21:16). Um escravo hebreu deveria trabalhar apenas seis anos para pagar sua dívida, sendo liberto no sétimo ano sem pagar nada (Êx 21:2). Além disso, ele deveria receber de seu proprietário alguns animais e alimentos para começar a vida novamente (Dt 15:13, 14).[3] Durante seu período de serviço, o(a) escravo(a) teria um dia de folga semanal, o sábado (Êx 20:10).

Notou alguma diferença entre a escravidão bíblica e aquela mantida em nosso país, há alguns séculos? A diferença também é significativa quando comparamos essas passagens bíblicas com o famoso Código de Hamurabi, rei de Babilônia, no 18º século a.C. Se algum escravo fugisse, ele deveria ser morto; enquanto que, em Israel, esse escravo deveria ser protegido (Dt 23:15, 16). Proteger um escravo fugitivo, em Babilônia, era uma grande ofensa, também punida com morte, como evidenciado nas leis 15-20 do referido código.[4]

Alguém pode questionar o motivo pelo qual Deus não aboliu a escravidão entre os israelitas. Lembre-se de que eles estavam inseridos numa cultura impregnada dessa prática. Mesmo que Deus a abolisse, isso não mudaria a forma como eles pensavam. A título de ilustração, imagine o árduo processo cultural para tornar a Arábia Saudita em uma democracia! Mesmo que essa mudança fosse feita, ainda levaria um bom tempo até que a mentalidade da nação fosse mudada. No entanto, a legislação israelita oferecia um tratamento muito mais humano para os escravos, colocando escravo e senhor em pé de igualdade (cf. Jó 31:13-15).    

Sedento por sangue?

Foi somente no século passado que a palavra “genocídio” foi criada pelo polonês Raphael Lemkin. Não existia uma palavra capaz de descrever o que Pol Pot fez no Camboja; Mao Tse-tung, na China; e Adolf Hitler, na Europa. Milhões de vidas foram exterminadas nesses e em outros genocídios.[5] Quando lemos textos como aquele de Deuteronômio, citado no início deste artigo, deveríamos colocar Deus nesse hall da fama sanguinário? Não. Há uma gigantesca diferença entre o que vemos no Antigo Testamento e aquilo que aconteceu no século 20.

Que motivos levaram Deus a punir as nações de Canaã? Abaixo veremos pelo menos quatro:

Sacrifícios humanos. A adoração entre os povos de Canaã não era tão inocente como alguns podem pensar. O culto ao deus Moloque, por exemplo, envolvia sacrifícios de crianças. Vestígios arqueológicos desse tipo de prática foram encontrados em Hazor, bem no centro de Canaã.[6] Alguns textos bíblicos sugerem que Salomão e Manassés podem ter participado desse tipo de prática (cf. 1Rs 11:7; 2Cr 33:5, 6). Em Levítico 20:1-3, Deus deixou clara Sua reação diante desse tipo de prática: pena de morte.

Homossexualidade. Aparentemente, a prática do homossexualismo não era condenada entre os povos do antigo Oriente Médio. Não dispomos de informações diretas da prática entre os cananeus, mas, no entanto, passagens como Levítico 18:3, 24-30, com sua condenação generalizada das práticas sexuais dos cananeus e dos egípcios, podem implicar que os habitantes de Canaã toleravam a prática do homossexualismo. Uma ideia mais clara pode ser obtida da história de Sodoma, em Gênesis 19.[7]

Incesto. Nos contos religiosos dos cananeus, Ba’al, uma divindade bem conhecida nas páginas do Antigo Testamento, mantinha relações sexuais com sua mãe, Asherah, sua irmã, Anat, e sua filha, Pidray, que também era sua esposa![8] Como uma doença degenerativa que se alastra aos poucos pelo corpo, o mesmo se dava com a prática do incesto naquela época. No Egito, por volta do 14º século a.C., se alguém tivesse um sonho incestuoso com sua mãe ou irmã, era sinal de bom presságio.[9]  

Bestialismo ou Zoofilia. Note a lei 199 de um código Hitita, povo que residia ao norte de Canaã, na atual região da Turquia: “Se um homem tem intercurso sexual com um porco ou cachorro, ele deverá ser morto. Se tiver intercurso com um cavalo ou mula, não há punição.”[10] Mas ainda existia espaço para mais bestialismo em Canaã. No texto “O ciclo de Ba’al”, essa divindade mantinha relações sexuais com uma vaca, e ela deu à luz um filho fruto dessa relação.[11] 

Por que Deus mandou que os israelitas destruíssem os cananeus?  Porque Ele odeia o pecado! Tal palavra soa estranha aos nossos ouvidos. Nossa visão quase romântica de Deus deixou espaço apenas para o amor e se esqueceu quase completamente de Sua justiça e santidade. Um leitor atual pode achar Elias severo demais matando 450 profetas de Ba’al (cf. 1Rs 18:40), ou Deus agindo com muita violência enviando pragas contra o Egito (cf. Êx 7-12). A verdade é que um Deus santo não pode suportar a maldade por muito tempo. De acordo com o profeta Habacuque, Ele não é capaz de olhar para o mal (cf. Hc 1:13).  Quem sabe nós consideremos essas e outras passagens agressivas demais porque ainda não descobrimos quão cruel e horrível é o mal.

Mas é necessário um equilibrio aqui. Apresentar somente a justiça e a santidade de Deus pode nos levar para uma compreensão quase tirana de Sua pessoa. É necessário vermos também os esforços dEle em favor dos cananeus. Deus enviou José para o Egito com o objetivo de salvar toda aquela região da fome que durou sete anos (cf. Gn 45:4-8). Além disso, os israelitas permaneceram no Egito por 400 anos com o objetivo de dar oportunidade para os cananeus se arrependerem de suas iniquidades (heb. ‘awon) (cf. Gn 15:16). Após saírem do país dos faráos e passarem 40 anos no deserto, até mesmo uma prostituta, Raabe, sabia o que Deus havia feito e o que Ele faria em Jericó e em todo o território de Canaã (cf. Js 2:9-13). Os cananeus sabiam que o juízo de Deus estava às portas. Note que Raabe foi poupada dessa destruição. Ela estava disposta a ser regenerada dessa cultura, assim como Deus estava disposto a salvar aqueles que demonstrassem profunda tristeza e mudança diante dos seus maus atos.

É possível ver aqui um traço do caráter de Deus revelado mais explicitamente no Novo Testamento. Em 2 Pedro 3:9, o apóstolo nos lembra de que o Senhor “não retarda a Sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, Ele é longânimo para convosco não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento”. Assim como ocorreu com os cananitas, as oportunidades de arrependimento e salvação para um mundo cada vez mais contrário aos preceitos divinos estão chegando ao fim. Deus é amor, mas também precisa ser justo com Seus filhos. Amor e destruição? Não. Amor e justiça.

Quão bom é Deus? Ele mesmo respondeu, dizendo: “Senhor, Senhor Deus compassivo, clemente e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até a terceira e quarta geração” (Êx 34:6, 7).

(Luiz Gustavo Assis é pastor adventista em Porto Alegre, RS)

Referências:

1. Richard Dawkins, Deus, um Delírio (São Paulo: Cia. das Letras, 2007), p. 31. Sam Harris também fez severas críticas ao Antigo Testamento em sua obra Carta a uma Nação Cristã (São Paulo: Cia. Das Letras, 2007).
2. Diversos materiais têm sido publicados sobre esses dois tópicos, entre eles: Paul Copan, Is God a Moral Monster? Making Sense the Old Testament God (Baker, 2011); Clay Jones, Killing the Canaanites: A Response to the New Atheism’ “Divine Genocide” Claims, disponível em http://www.equip.org/articles/killing-the-canaanites (acessado em 9/3/11); Stanley Gundry (ed.), Deus Mandou Matar? Quatro pontos de vista sobre o genocídio cananeu (São Paulo: Vida Nova, 2006); Roy Gane, “Israelite Genocide and Islamic Jihad”, Spectrum 34:3 (2006), p. 61-65.
3. Gary Rendsburg, The Fate of Slaves in Ancient Israel. Disponível em: http://www.forward.com/articles/2888/ (acessado em 9/3/11).
4. Eugene E. Carpenter, Deuteronomy, em Zondervan Illustrated Bible Backgrounds Commentary, ed. John Walton  (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2009), p. 1:496.
5. O matemático judeu David Berlinski cita duas páginas de estatísticas de massacres cometidos no ultimo século, em sua obra The Devil Delusion:Atheism and Its Scientific Pretensions (New York: Basic Books, 2009), p. 22-24.
6. E. E. Carpenter, Human Sacrifice, em The International Bible Encyclopedia, ed. Geoffrey W. Bromley (Grand Rapids: Eerdmans, 1988), p. 4:259. Para mais informações sobre os cultos a Moloque, ver George Heider, Moloch, em The Anchor Bible Dictionary, ed. David Noel Freedman (Doubleday, 1992), p. 4:895-898.
7. Gordon J. Wenham, The Old Testament Attitude to Homosexuality, Expository Times 102 (1991), p. 361.
8. William F. Albright, Yahweh and the Gods of Canaan: A Historical Analysis of Two Contrasting Faiths (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 1968), p. 126.
9. Lise Manniche, Sexual Life in Ancient Egypt (London: Routledge, 1987), p. 100.
10. Harry A. Hoffner Jr., “Incest, Sodomy and Bestiality in the Ancient Near East”, in Orient and Occident: Essays Presented to Cyrus H. Gordon on the Occasion of His Sixty-fifth Birthday, ed. Harry A. Hoffner, Jr. (Neukirchen Vluyn, Germany: Neukirchener Verlag, 1973), p. 82.
11. Hoffner, Jr., p. 82.

terça-feira, setembro 11, 2012

Os 144 mil do Apocalipse

Quem são os 144 mil mencionados no livro do Apocalipse?

Um dos temas que mais intrigam os adventistas e os cristãos em geral são os 144 mil do Apocalipse. Muitos não compreendem nem mesmo os aspectos mais básicos em relação a eles – se o número é literal ou simbólico, se eles fazem parte da chamada “grande multidão” e, principalmente, quem são eles. Em grande parte, isso se deve a um conselho de Ellen White, de se evitar discussões inúteis sobre esse assunto, assim como outros não essenciais para a salvação.[1] No entanto, ela mesma citou esse grupo dezenas de vezes em seus escritos, relacionando-o a acontecimentos cruciais para o povo de Deus no tempo do fim, como o selamento e a grande tribulação. Tamanha foi a importância desse grupo em seu ministério profético, que os 144 mil foram representados logo em sua primeira visão, sobre o povo do advento.[2]

Apesar de haver escrito tanto sobre os 144 mil, Ellen White nunca os definiu claramente. A própria Igreja Adventista até hoje não tem uma posição oficial abrangente sobre o assunto. Embora o Instituto Bíblico de Pesquisas, órgão oficial da Associação Geral, interprete o número como simbólico[3], a igreja não determina oficialmente essa compreensão como uma crença.[4] E, apesar de o Seventh-day Adventist Commentary declarar que, até à época de sua reedição (1980), os adventistas favoreciam a interpretação de que os 144 mil são um grupo especial do povo de Deus nos últimos dias – um grupo à parte da grande multidão[5] –, essa também não era nem é até hoje uma posição oficial da igreja. O assunto ainda está em estudo, e o que se enfatiza não é quem são os 144 mil, mas como ser parte deles, como alcançar a salvação.[6]

Por outro lado, se Ellen White condenou discussões inúteis, também encorajou os adventistas a não desistir de buscar conhecer cada vez mais a Bíblia e as profecias.[7] Em uma de suas mais fortes declarações, ela afirmou: “A história da igreja nos ensina que o povo de Deus não deve ficar estereotipado em suas teorias da fé, mas preparar-se para nova luz, para abrir a verdade revelada em Sua Palavra.”[7]

Portanto, os ensinos e profecias da Bíblia podem e devem ser compreendidos cada vez mais à medida que o tempo passa e os estudos progridem. Aspectos como a justificação pela fé, que Ellen White não compreendia inicialmente, foram entendidos por ela décadas depois. Da mesma forma, partes da Bíblia que ela não entendia, pela falta de estudos mais profundos à época, hoje podem ser mais bem compreendidas (assim como Daniel não entendia suas próprias profecias, mas hoje podemos compreendê-las, ver Daniel 12:4).

Avanços

Nas últimas décadas, diversos estudos envolvendo os 144 mil têm sido divulgados por meios oficiais da igreja, como o Instituto Bíblico de Pesquisas da Associação Geral (BRI, sigla em inglês), lançando mais luz sobre o assunto. Uma importante coleção de materiais sobre Daniel e Apocalipse lançada no início dos anos 1990 é a série Daniel & Revelation Comitee Series, conhecida como “Darcom”. Num dos volumes da coleção, um capítulo escrito por Beatrice Neall, “Sealed Saints and the Tribulation” (“Os Santos Selados e a Tribulação”) trata diretamente dos 144 mil.[8] Nesse estudo, um ponto especial pode ser destacado: a relação entre os 144 mil e a “grande multidão” de Apocalipse 7. Em vez de enfatizar as diferenças entre ambos os grupos, a autora apresenta diversas “marcas de identificação” entre eles – evidências de que podem constituir um só grupo. Assim como ela, outros acadêmicos adventistas, como Ekkehardt Mueller, um dos diretores associados do BRI, também favorecem essa posição.

Os 144 mil são apresentados em duas seções, em Apocalipse: 7:1-8 e 14:1-5. No capítulo 7, o relato sobre os 144 mil é seguido pela descrição de uma multidão inumerável. A primeira grande evidência de que os 144 mil e a grande multidão podem ser o mesmo grupo é a própria estrutura do livro do Apocalipse. O capítulo 7 é um hiato, um parêntese entre o sexto e o sétimo selos. Ele responde a uma pergunta básica feita pelos ímpios no sexto selo.

Diante da expectativa da vinda de Jesus, os ímpios clamam aos montes e aos rochedos: “Caí sobre nós e escondei-nos da face dAquele que Se assenta no trono e da ira do Cordeiro, porque chegou o grande dia da ira dEles; e quem é que pode suster-se?” (Ap 6: 16, 17). Parafraseando, “quem poderá ficar de pé quando Cristo voltar?” Em 7:9, a resposta é direta: “Depois destas coisas, vi e eis grande multidão que ninguém podia enumerar [...] em pé diante do trono e diante do Cordeiro” (v. 9). Mais à frente, no livro, os 144 mil são vistos em pé junto ao Cordeiro, no monte Sião (Ap 14:1). 

Os 144 mil e a grande multidão são descritos em momentos diferentes, como os únicos que podem ficar de pé diante de Cristo, em Sua vinda à Terra. Isso deixa claro que ambos são o retrato do povo de Deus que estará vivo por ocasião da volta de Jesus. A questão é: Eles são dois grupos ou um só?

Um grupo

Assim como Beatrice Neall, Ekkehart Mueller, em seu artigo “The 144,000 and the Great Multitude”[9] (“Os 144 mil e a Grande Multidão”), apresenta argumentos convincentes em favor de que ambos os grupos são um só: (1) João ouve o número dos selados (144 mil), mas, na sequência, contempla uma grande multidão (7:4, 9), assim como em 5:5, 6 ele tinha ouvido sobre um Leão, mas viu um Cordeiro; (2) no capítulo 7, os 144 mil são os justos do tempo do fim descritos ainda na Terra; a grande multidão é um retrato desse povo já no Céu; (3) os 144 mil são a descrição do povo de Deus no tempo do fim, que vai passar pela grande tribulação (representada pela liberação dos ventos); a grande multidão são os que já passaram pela tribulação (7:3, 14); (4) os 144 mil são os selados antes da liberação dos ventos (7:3); a grande multidão logicamente precisou ser selada antes de passar pela grande tribulação (7:14).[10]

O selamento e a grande tribulação são as principais marcas de identificação, conforme Neall chama, entre os 144 mil e a grande multidão. Ambas as marcas dão fundamentos para se enxergar semelhanças, não diferenças, entre os grupos. Os dois grupos foram selados e passaram pela tribulação. Não é à toa que, no livro O Grande Conflito, Ellen White se refira aos 144 mil, citando versículos referentes diretamente à grande multidão (Ap 7:14-16).[11]

Assim, resta uma dúvida: O que poderia diferenciar os 144 mil da grande multidão? Haverá dois grupos de justos vivos quando Cristo voltar? Alguns argumentam que os 144 mil são as “primícias” (Ap 14:4), um grupo especial em relação à grande multidão. No entanto, “primícias” pode se referir aos 144 mil como os primeiros frutos da “colheita universal de redimidos de todas as eras”. Diante disso, Mueller conclui que “é melhor entender que os 144 mil e a grande multidão são o mesmo grupo, visto por diferentes perspectivas”. Para ele, os 144 mil representam um “termo simbólico”, enquanto a grande multidão “descreve a realidade”. [12]

O simbolismo dos 144 mil pode encontrar sua realidade na grande multidão em diversos outros aspectos, entre eles: (1) origem étnica – João ouviu de um grupo composto por 12 tribos de 12 mil filhos de Israel, mas viu uma multidão de tribos (7:9); (2) número – João ouviu um número exato, mas viu uma multidão inumerável (7:4, 9); (3) pureza – os 144 mil são descritos como puros, sem mancha, assim como a grande multidão, vestida de vestiduras brancas (14:4. 5; 7:14); (4) proximidade ao Cordeiro – os 144 mil “seguem o Cordeiro para onde quer que vá”, assim como a grande multidão serve de “dia e de noite” diante do trono e do Cordeiro (14:4; 7:15, 17); (5) serviço – os 144 mil são “servos de Deus”, e a grande multidão também “serve a Deus” (7:3, 15).

Hans K. LaRondelle, eminente teólogo adventista, apontou os 144 mil como o povo remanescente de Deus no tempo do fim, fiéis de todas as nações que “guardam os mandamentos de Deus e têm a fé em Jesus” (Ap 14:12). Segundo LaRondelle, eles enfrentarão a crise final promovida no mundo pelo anticristo. Ou seja, ele enxerga nos 144 mil um simbolismo do remanescente que passará pela grande tribulação.[14]

Diante das evidências apresentadas, torna-se ainda mais claro que o número 144 mil é simbólico. O próprio contexto das passagens indica isso: tanto no capítulo 7:1-8, como em 14:1-5, a linguagem diretamente ligada aos 144 mil tem forte simbolismo – ventos, quatro anjos, quatro cantos, selamento na testa, homens virgens, doze tribos de Israel (a maioria extinta, além de a lista não corresponder à original dos doze patriarcas), etc. É mais coerente entender os 144 mil das 12 tribos de Israel como que simbolizando a unidade, perfeição, completude e vastidão da igreja de Deus.[15]

Portanto, é possível concluir que os 144 mil simbolizam a grande multidão – a multidão inumerável que atravessará a crise final da Terra. Há razões para se acreditar que Jesus não virá para buscar um pequeno grupo de remidos, nem dois grupos de justos vivos na Terra, mas um remanescente fiel composto por uma multidão inumerável de todas as nações. Virá buscar um povo que terá passado por muitas dificuldades, mas que contou com a proteção de um Deus que lhes enxugará pessoalmente “toda lágrima” (Ap 7:17). Mais importante ainda é nos prepararmos para pertencer a esse grupo.

(Diogo Cavalcanti, editor na Casa Publicadora Brasileira)

Referências:

1. White, Ellen G. Eventos Finais, p. 268.
2. White, Ellen G. Primeiros Escritos, p. 15-23.
3. Pfandl, Gerhard. “Information on the Seventh-day Adventist Reform Movement”. Biblical Research Institute. Num ponto desse artigo, a crença reformista de que 144 mil é um número literal é posta em contraste com a crença adventista do sétimo dia de que o número é simbólico. Disponível em: http://www.adventistbiblicalresearch.org/Independent%20Ministries/SDA%20Reform%20movement.htm
4. Nichol, F. D. (Ed.). Seventh-day Adventist Bible Commentary, v. 7. Hagerstown, MD: Review and Herald, 1980. p. 783.
5. Ibid., p. 785.
6. Ibid., p. 783.
7. White, Ellen G. Caminho a Cristo, p. 112. Conselhos Sobre a Escola Sabatina, p. 23.
8. White, Ellen G. Cristo Triunfante, p. 317.
9. Frank Holbrook (ed.). Beatrice Neall. “Sealed Saints and the Tribulation”. Symposium on Revelation – Book I. Daniel & Revelation Committee Series. Hagerstown: Review and Herald, 2000. p. 245-278.
10. Mueller, Ekkehardt. “The 144,000 and the Great Multitude”. Biblical Research Institute. Disponível em: http://www.adventistbiblicalresearch.org/documents/144%2C000greatmultitude.htm
[1]1. Ibid.
[1]2. White, O Grande Conflito, 648, 649.
[1]3. Mueller. Ibid.
[1]4. LaRondelle, Hans K. “Prophetic Basis of Adventism”. Adventist Review, 1° de junho-20 de julho, 1989. Disponível em: http://www.adventistbiblicalresearch.org/documents/Prophetic%20Basis%20Adventism.htm
[1]5. Neall, Ibid. 262, 269.

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