quarta-feira, dezembro 18, 2013

Apocalipse 17 e o mistério do oitavo rei

O que simbolizam a meretriz, a besta escarlate e os demais elementos de Apocalipse 17?

Sete séculos se passaram e mais de 70 papas se sucederam até que um novo pontífice ousasse abdicar do chamado trono de Pedro. No dia 11 de fevereiro de 2013, Bento XVI anunciou que declinaria de seu pontificado. “Bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de bispo de Roma, sucessor de São Pedro”, assim anunciou Bento XVI, alegando sua idade avançada e decrescente vigor. Contudo, dias depois, Bento XVI condenou a “hipocrisia religiosa” e afirmou ter enfrentado “águas agitadas”, certamente em referência aos escândalos de pedofilia, lavagem de dinheiro no Banco do Vaticano e, mais recentemente, de práticas homossexuais na própria Cúria Romana. Em entrevista ao canal de notícias Globo News, no dia 27 de fevereiro deste ano, o arcebispo Dom Geraldo Majella confirmou que até a vida de Bento XVI estava em perigo.

Contudo, as especulações sobre a renúncia de Bento XVI têm ido muito além das questões internas do Vaticano. Em alguns círculos, elas intensificaram uma expectativa em torno da chamada “teoria dos sete reis”, construída sobre Apocalipse 17. A teoria enumera os papas a partir do estabelecimento do Estado do Vaticano, em 1929, até a volta de Jesus. Portanto, Bento XVI, o sétimo papa desde então e cujo pontificado foi relativamente breve, é visto como o “rei” que tinha que “durar pouco” (Ap 17:10). Dessa forma, de acordo com a teoria, o papa Francisco I, o oitavo, seria o último antes da segunda vinda de Cristo (veja mais aqui). Essa teoria não recebe o apoio da Igreja Adventista do Sétimo Dia, pois carece de fundamentação bíblica, como veremos a seguir.

A meretriz e a besta – A interpretação de Apocalipse 17 é um dos maiores desafios para o estudante da Bíblia. Não existe pleno consenso sobre todos os pormenores dessa profecia. No entanto, com o avanço do estudo do Apocalipse, mais luz tem sido lançada sobre essa incrível seção do livro.

Para se compreender os aspectos básicos de Apocalipse 17, é preciso que se entenda o propósito da visão e seu lugar no livro. A visão tem uma ligação direta com o capítulo 16, que trata das sete pragas, sendo que as duas últimas afligem a Babilônia espiritual (Ap 16:12-21). Ao fim do relato dessas pragas, um dos anjos que as derramaram convida João para ver o julgamento (do grego krima, “sentença”) da Babilônia espiritual, a “grande meretriz” (Ap 17:1). Em resumo, o anjo quer mostrar por que Babilônia e seus apoiadores foram tão severamente castigados por Deus (Jacques Doukhan, Secrets of Revelation, p. 160).

João ouviu sobre uma meretriz “sentada sobre muitas águas”, mas o profeta viu uma “mulher montada numa besta escarlate” (Ap 17:1, 3). A figura da mulher nas profecias bíblicas sempre esteve relacionada ao povo de Deus, à igreja (Gn 3:15; Os 2:19; Jr 3:14; 2Co 11:2), ao passo que a prostituição sempre foi associada à infidelidade espiritual da igreja (Jr 3:20; Ez 16:32; Ap 2:20). A meretriz é a contrafação da “noiva, a esposa do Cordeiro”, que também foi apresentada a João por “um dos sete anjos que têm as sete taças” (Ap 21:9). A “grande cidade” (Ap 17:18) tenta imitar a “santa cidade” (Ap 21:10). Em síntese, a meretriz ou Babilônia pretende dominar o mundo, com uma autoridade pretensamente divina, mas satânica em sua essência.

A simbologia religiosa também é evidente na aparência da mulher, “vestida de púrpura e de escarlata, adornada de ouro, de pedras preciosas e de pérolas” e com uma inscrição “na sua fronte” (Ap 17:4, 5), elementos também presentes nas vestes do sumo sacerdote do antigo santuário (Êx 28:4-35; 35:9; 39:30; Ranko Stefanovic, Revelation of Jesus Christ, 2ª ed., p. 517, 518).

A meretriz, portanto, representa um poder religioso que exercerá domínio global nos últimos momentos da história (Ap 17:15). Mas esse poder religioso não dominará sem ajuda. A meretriz precisará de apoio político das nações para exercer influência sobre as massas humanas, assim como a primeira besta depende da segunda, em Apocalipse 13. No capítulo 17, o instrumento que ela utiliza para dominar a humanidade é a besta sobre a qual está montada, que representa um poder político. Bestas (ou animais ferozes), em profecias bíblicas, sempre representaram potências que oprimiram o povo de Deus (Is 30:6, 7; Dn 7:5-7; 11, 19, 23; Ap 13:2, 11). A meretriz seduz a besta, e, por meio dela, exerce domínio mundial.

As armas simbólicas de sua sedução estão em seu corpo e no cálice que ela segura. Ela usa o corpo para se prostituir com os reis da Terra, atraídos por seu luxo e aparência. A simbologia trata das alianças com os governantes, para benefício mútuo (Ap 17:2; 18:3, 12-17; cf. Is 23:15-17; Ez 23:3, 30). Por sua vez, as multidões são enganadas pelo “vinho de sua devassidão” contido no cálice (Ap 17:2, 4). Neste aspecto se representa o poder sedutor da meretriz, que faz uso de um falso evangelho e de milagres (Ap 13:13, 14; 18:23; 19:20; Francis D. Nichol (ed.), The Seventh-Day Adventist Bible Commentary, v. 7, p. 850).

A própria meretriz se achava “embriagada com o sangue dos santos e [...] das testemunhas de Jesus” (Ap 17:6). Nos últimos momentos da história, a meretriz, antes mesmo de tentar derramar sangue inocente, já está embriagada, pois assassinou milhões de filhos de Deus por mais de um milênio (Dn 7:25). Portanto, nenhum outro poder religioso pode se encaixar nessa descrição, além da Igreja Romana.

Ellen G. White identificou a meretriz como a Igreja Romana (O Grande Conflito, p. 171), que será julgada pelos crimes cometidos contra o povo de Deus ao longo da história (Ap 18:24) e até do sangue que intentará derramar no fim dos tempos (Nichol, p. 628). No entanto, a Igreja Romana não estará isolada como poder religioso. A “mãe das meretrizes” (Ap 17:5) terá o apoio de outras organizações religiosas, em especial, de outras denominações cristãs (O Grande Conflito, p. 382, 383). Portanto, essa confederação religiosa formará a Babilônia mística.

A besta e suas cabeças – Se a meretriz representa uma confederação religiosa, a besta, os dez chifres/reinos e os reis da terra (Ap 17:12, 13, 16) representam uma confederação política que a sustentará no desfecho final. Há, portanto, uma distinção clara entre os poderes político e religioso (Nichol, p. 851). Neste ponto se encontra o principal equívoco da teoria dos sete reis como sete papas. Como as cabeças da besta seriam sete papas, se a besta representa o poder político que dá suporte ao papado? Outro erro: Se o oitavo rei representa o último papa, como ele se unirá aos dez chifres/reinos em ódio mortal à meretriz (Ap 17:16), que representa o próprio papado? O papa odiaria a si mesmo? Isso entra em contradição com o sentido lógico do texto.

Ellen G. White descreve a situação crítica dos líderes religiosos apóstatas nos últimos momentos da história. Sofrendo sob as pragas, as multidões reconhecerão o “dedo de Deus” (Êx 8:19) e concluirão que foram iludidas por seus líderes religiosos. Por isso, dirigirão “suas mais amargas condenações contra os ministros”. Então se repetirá a matança ocorrida após o desafio de Elias (1Rs 18:40), e os falsos profetas do tempo do fim serão mortos por seus próprios seguidores (O Grande Conflito, p. 655, 656).

Sobre as cabeças da besta, a chave para sua compreensão está na explicação do anjo (Ap 17:9). Embora o termo “montes” seja tradicionalmente defendido como “uma alusão à cidade de Roma, com suas sete colinas” (Nichol, p. 855), ele tem um sentido específico na antiga mentalidade hebraica. Daniel orou pelo “monte santo” do seu Deus, significando que orava por Jerusalém (Dn 9:16). Jeremias transmitiu uma ameaça divina contra a antiga Babilônia, chamando-a de “monte” que destrói (Jr 51:24). A pedra que destrói a estátua de Nabucodonosor se transforma numa grande montanha, o reino de Deus (Dn 2:35, 44). Assim, ao longo de todo o Antigo Testamento, percebe-se que a palavra “montes” também representa reinos (ver Sl 48:2; 78:68; Is 2:2-3; 13:4; 31:4; 41:15; Ez 35:2, 3; Ob 8, 9; Stefanovic, p. 296).

A interpretação católica, por sua vez, tenta restringir a figura dos sete montes às sete colinas da antiga Roma, para identificar a besta de Apocalipse 17 com o império romano. Em vista disso, Kenneth Strand, teólogo adventista já falecido, ressaltou que a tradução correta do termo grego oros em Apocalipse 17:9 é “montes”, não “colinas”. Afirmou também que, em sentido simbólico, ela sempre deve ser entendida como reinos e nunca como indivíduos ou governantes (Kenneth Strand, “The Seven Heads: Do They Represent Roman Emperors?”, Simposium on Revelation – Book II, v. 7, p. 186).

Assim como “montes”, o termo “reis” também representa reinos (Is 14:4, 22, 23; Dn 2:37, 38, 42-44; 7:17). Portanto, como as cabeças são sete montes e sete reis (Ap 17:9), e ambos representam reinos, as cabeças também simbolizam reinos.

Fator tempo – Evidentemente, os sete reinos representados pelas sete cabeças da besta de Apocalipse 17 foram impérios sucessivos. Na explicação, o anjo afirmou que, no tempo de João, cinco já haviam passado e que “um existe” (Ap 17:10). Esta é a principal referência cronológica da profecia, pois a explicação do anjo fez uma referência aos dias do profeta. Ekkehardt Mueller, diretor associado do Instituto de Pesquisas Bíblicas da Associação Geral da Igreja Adventista, afirma que, se a referência fosse a outro tempo ao qual o profeta tivesse sido transportado, não haveria como determiná-la. Para que a profecia se faça compreendida, a referência cronológica na explicação de qualquer profecia é sempre uma referência ao tempo do profeta. Esse princípio é exposto pelo escatologista Jon Paulien: “A visão não está necessariamente localizada no tempo e lugar do profeta. Mas, quando a visão é posteriormente explicada ao profeta, a explicação sempre vem no tempo, lugar e nas circunstâncias do que tem a visão” (ver Ekkehardt Mueller, “A Besta de Apocalipse 17: Uma Sugestão”, Parousia, 1° sem. 2005. p. 37; ver também Jon Paulien, Armageddon at the Door, p. 214).

Assim, o versículo 10 constitui a âncora cronológica da interpretação das sete cabeças da besta de Apocalipse 17, algo que a teoria dos sete papas ignora. A sexta cabeça representa o Império Romano, existente no tempo de João. Antes do Império Romano, outros cinco oprimiram o povo de Deus, os impérios: egípcio, assírio, babilônico, medo-persa e macedônico (chamado de Grécia, na Bíblia).

O sétimo rei ainda estava no futuro, do ponto de vista de João, Roma papal, que se tornaria predominante na Europa por mais de mil anos. Ela é representada pela sétima cabeça, pois, assim como os outros impérios, também concentrou poderes civis e políticos, incluindo o comando de exércitos e o domínio de territórios.

Alguns veem inconsistência na interpretação do sétimo rei como Roma papal, quando se leva em conta que o sétimo rei deveria “durar pouco” (Ap 17:10). No entanto, segundo Ranko Stefanovic, a expressão “tem de durar pouco” (do grego: oligon auton dei meinai) tem um sentido “qualitativo”, da mesma forma que em Apocalipse 12:12, em que Satanás percebe que “pouco tempo lhe resta” (oligon kairon echei). Após Cristo subir ao Céu, Satanás percebeu que tinha “pouco tempo”, e esse período já se prolonga por quase dois mil anos! “Em outras palavras, a expressão indica que o tempo de Satanás é limitado. A expressão ‘pouco tempo’ de Apocalipse 17:10 está em contraste com mikron kronon (‘pouco tempo’) de Apocalipse 20:3, designado para Satanás, com referência ao julgamento pendente contra ele” (Stefanovic, p. 521).

O oitavo rei – A figura do oitavo rei e alguns aspectos relacionados a ele são a parte mais enigmática da profecia. Sobre esse tópico, a Igreja Adventista do Sétimo Dia não tem uma interpretação estabelecida. Analisando a história da interpretação adventista de Apocalipse 17, Jon Paulien relata que Uriah Smith nem Ellen White definiram o sentido dos versículos 7 a 11 (Paulien, p. 166).

Embora contribuições possam ser dadas, é preciso ter prudência, pois, de acordo com Paulien, “aplicações ultraespecificas para o presente ou futuro imediato têm levado muitos a erros de interpretação embaraçosos”. Em alguns casos, é o testemunho histórico do cumprimento profético que nos permite interpretá-lo. Esse princípio é encontrado em João 13:19: “Desde já vos digo, antes que aconteça, para que, quando acontecer, creiais que Eu Sou” (ver Paulien, 166).

Analisando a profecia, percebemos que o surgimento do oitavo rei está relacionado aos momentos finais deste mundo. Seu aparecimento provoca admiração mundial (v. 8), sua autoridade dura apenas “uma hora”, ou seja, é efêmera (v. 12) e, logo que surge, esse poder “caminha para a destruição” (v. 8), pois vai se unir a dez reis/reinos para enfrentar o Rei dos reis e ser finalmente derrotado (Ap 17:14; 19:16).

A expressão “era e não é” (v. 8, 11) possivelmente é “uma paródia do título de Deus como “Aquele que era, que é e que há de vir” (Ap 4:8; ver 1:4, 8). O título divino se refere ao “nome da aliança de Deus” e a Sua “visitação escatológica” (David Aune, Revelation 17–22, p. 940. In: Stefanovic, 523), ou seja, Deus agindo no fim dos tempos para salvar Seu povo e condenar seus inimigos. Se Deus age desse modo, um poder terreno também atua contrariamente a Ele e a Seu povo. O título “era e não é” contrasta a onipotência de Deus com a transitoriedade e debilidade das nações (ver Is 40:15).     

Outros relacionam a expressão “era e não é” a Roma papal, representada pela primeira besta ferida mortalmente, mas que se recupera como força religiosa no fim dos tempos (Ap 13:1-10). Essa posição aparentemente é a mais plausível, no entanto, colide com pelo menos dois fortes argumentos: (1) A Igreja Romana do fim dos tempos já está representada na visão como a mulher montada sobre a besta. É verdade que ela também é representada historicamente como a sétima cabeça, mas, no desfecho escatológico, a Igreja Romana é representada como a meretriz; (2) ela será tão somente uma força religiosa, não político-militar, como a simbologia da besta exige; (3) o oitavo rei, que é a própria besta (v. 11), odiará a mulher (Igreja Romana e sua confederação, v. 16). Uma confederação religiosa (meretriz) terá o suporte de uma confederação política (a besta e os dez chifres), a qual se voltará contra a meretriz e a destruirá.

Alguns ainda enxergam o oitavo rei ou a besta como o próprio Satanás (Nichol, 856; Mueller, 33), no entanto, esse não parece ser o caso. Embora a semelhança com o dragão de Apocalipse 12 seja evidente na cor, nas sete cabeças e dez chifres (Ap 17:3), percebemos que bestas em profecias apocalípticas geralmente representam impérios perseguidores (Dn 7:5-7, etc.).

Nesse caso também é preciso repetir que a besta odiará a meretriz e a destruirá (Ap 17:16), o que não faz sentido em se tratando de Satanás. A desavença na aliança político-religiosa faz parte de um plano divino (v. 17; ver Ez 23:22-29), não satânico. Também não seria lógico crer que Satanás destruiria seus próprios instrumentos de engano e perseguição (Mt 12:25). Por fim, o apêndice da visão (Ap 17:18) deixa claro que a “grande cidade” (Babilônia mística) domina sobre os “reis da terra” (líderes humanos).

A manifestação final de um poder perseguidor é representada pelo oitavo, que é a besta propriamente dita (v. 11). É interessante notar que o texto grego não afirma a existência de uma oitava “cabeça” e omite a palavra “rei”. Menciona-se apenas o “oitavo”, que, pelo contexto, entendemos ser um “oitavo rei”. Do versículo 12 em diante, a besta é mencionada nominalmente mais quatro vezes (v. 10, 13, 16, 17). Isso reafirma que a besta em si será o oitavo rei e que ela representa um poder mais escatológico que histórico, ou seja, que sua ação no contexto de Apocalipse 17 está mais relacionada ao fim dos tempos do que com o passado (embora ela seja julgada pelo que fez no passado). Portanto, se as sete cabeças da besta representam “reis” (v. 9) ou impérios perseguidores, o oitavo rei será o último deles.

Uma dificuldade desse ponto de vista é que o oitavo rei “procede dos sete” (v. 11), talvez indicando que o último império perseguidor seria Roma papal, que se recuperaria da ferida mortal (Ap 13:12) e voltaria com força renovada nos instantes finais deste mundo (Paulien, p. 219). No entanto, isso contraria o sentido geral do texto e confunde as identidades da mulher (poder religioso) e da besta (poder político). Se a meretriz se prostitui com a besta (reis da terra), ela não pode ser a besta.

A expressão “procede dos sete” talvez tenha uma relação com a natureza do oitavo rei, no sentido de que ele seria semelhante aos anteriores (ver Paulien, p. 219). Alguns enxergam essa expressão como que estabelecendo uma distinção do oitavo reino em relação aos demais (ver Stefanovic, 525). Contudo, a expressão pode indicar tanto semelhança quanto distinção. A preposição grega ek, sem equivalente em português, tem o sentido de “vir de”, como a preposição inglesa from, e foi traduzida em português com o verbo “proceder” (ARA).

João, assim como os demais escritores do Novo Testamento, utiliza ek abundantemente. Contudo, o texto joanino tem como uma de suas características marcantes o uso de ek, indicando associação, mesma natureza, semelhança e, ao mesmo tempo, distinção (confira o verbo “proceder” em Jo 15:26; 1Jo 2:16, 21; 3:8, 10; 4:1, 3, 5, 7; 3Jo 11; Ap 5:9). Assim, o texto parece indicar que o oitavo rei “procede dos sete” no sentido de ser como um deles e não necessariamente ter sido um deles, assim como o Consolador “procede” do Pai, mas não é o Pai (Jo 15:26).

Que reino ou império (v. 9, 11) poderia ser o oitavo? Em primeiro lugar, ele deverá ser uma potência que dará apoio incondicional à Igreja de Roma às vésperas da volta de Jesus. Será um poder coercitivo de alcance mundial que se unirá aos ainda indefinidos dez chifres (reis ou reinos; ver v. 12) e que aglutinará todos os governantes da Terra, formando uma confederação política global (Ap 17:12, 13, 18; 18:3, 9). Essa coalizão se levantará contra Deus e Seu povo, mas será esmagada pelo Rei dos reis (Ap 19:18, 19). Para Paulien, a identidade do oitavo rei ainda está indefinida, mas representa a própria coalizão de nações (Paulien, 219).

Vanderlei Dorneles, autor de O Último Império (CPB), acredita que uma analogia com Apocalipse 13 pode lançar luz sobre a questão (leia o texto dele aqui). Em Apocalipse 13, a segunda besta (os Estados Unidos, ver O Grande Conflito, p. 579) será o poder que dará suporte ao papado, exercendo “autoridade” sobre a “terra e seus habitantes” (v. 12), ou seja, terá uma influência global. Se a mesma aliança é retratada em Apocalipse 17, com a mulher sendo carregada pela besta, é possível fazer uma relação entre ambos os capítulos: como a primeira besta de Apocalipse 13 está para a meretriz, assim a segunda besta de Apocalipse 13 está para o oitavo rei/reino. Ou seja, o oitavo reino representaria a superpotência americana que lideraria as nações para dar suporte à confederação religiosa. “Uma vez que as cabeças representam reinos/impérios sucessivos, o último ou oitavo deles podem ser os Estados Unidos, que seriam o último poder político sobre o qual a meretriz está montada”, afirma Dorneles.

Conclusões – Embora todas as análises de Apocalipse 17 sejam fascinantes, essa seção está em estudo e uma posição definida ainda é esperada. Este artigo não se propôs a esgotar a interpretação, mas o que foi exposto até aqui provê evidências suficientes para se rejeitar a teoria dos sete reis como uma sucessão de indivíduos ou papas. O contraste entre a superficialidade da teoria e os sólidos alicerces da interpretação profética nos relembra a exortação do autor do Apocalipse: “provai os espíritos se procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora” (1Jo 4:1). Não devemos aceitar prontamente as teorias que batem à nossa porta. Devemos ir às Escrituras como os antigos bereanos (At 17:11), para não sermos levados por “todo vento de doutrina” (Ef 4:14).

Por outro lado, no estudo de Apocalipse 17, percebemos como Deus tem o firme controle da história. Ele já sabe quais serão os próximos passos do inimigo e utiliza até mesmo suas manobras malignas para benefício de Seu povo. Embora esteja prevista a formação de uma imensa coalizão político-religiosa contra os “eleitos e fiéis” (Ap 17:14), Cristo, o Rei dos reis, Se levantará como nosso supremo Defensor (Dn 12:1). Aquele que nos criou e deu a vida por nós será nosso refúgio e baluarte. Podemos ter a mesma confiança de que “mais são os que estão conosco do que os que estão com eles” (2Rs 6:15).

(Diogo Cavalcanti é formado em Teologia e é editor associado de livros na Casa Publicadora Brasileira)

Semelhantes, mas diferentes

Apesar das semelhanças, a besta de Apocalipse 17 não é a mesma do capítulo 13. A besta do capítulo 17 representa uma pluralidade de organizações (sete impérios sucessivos mais um império final associado a dez reinos). A besta do capítulo 13 representa apenas um império, Roma papal (O Grande Conflito, p. 54). A besta do capítulo 13 é um poder político-religioso, por isso tem diademas; a do capítulo 17 é um poder político nos eventos finais, mas não tem diademas, pois rende sua autoridade à meretriz. Ambas as bestas são semelhantes, por terem relação direta com o dragão (Ap 12:3). Contudo, é importante lembrar que a besta de Apocalipse 13 está representada historicamente como a sétima cabeça da besta do capítulo 17 e, em seus momentos finais, como a meretriz. 

terça-feira, setembro 10, 2013

Obelisco no túmulo de Ellen White

Disseram-me que Ellen White e seu esposo têm, cada um, um obelisco em suas sepulturas. Isso é verdade, e, se é, podem contar-me a história que existe por trás disso?

Algumas pessoas têm expressado surpresa e preocupação ao verem um monumento no formato de um obelisco no cemitério da família de Tiago e Ellen White. O obelisco (um, apenas) não é uma lápide para uma das pessoas ali enterradas, mas um marco familiar no centro do lote. A preocupação surge por causa da conexão que existe entre obeliscos e o culto pagão do Egito, bem como outras associações questionáveis. Evidentemente, contudo, muitas pessoas no século 19 não consideravam isso um problema. Os obeliscos eram marcos comuns nos cemitérios daquele tempo. Nas proximidades do mausoléu da família White, existem algo como 20 ou 30 outras sepulturas com marcos em forma de obelisco. Uma situação semelhante existe no cemitério de Rochester, Nova York, onde alguns pioneiros do adventismo foram sepultados. É pouco provável que toda essa gente fosse maçom ou adeptos de religiões antigas que adoravam o Sol. O uso de obeliscos como marcos de cemitérios era apenas uma prática comum, não um tributo à maçonaria ou a crenças pagãs. Os adventistas daquela época pareciam estar entre os que não viam nenhum problema no uso de obeliscos.

Recentemente, encontramos uma correspondência relacionada a essa questão entre as cartas de George I. Butler, que era o presidente de Associação Geral quando Tiago White morreu, em 1881, e por vários anos após. Em 12 de fevereiro de 1884, o Pastor Butler escreveu para a Sra. White: “O monumento de granito escuro em B.C. (Battle Creek) que a senhora viu, eu o encomendei na semana passada, a pedido do seu filho Willie. Ele me disse que debitasse essa despesa em sua conta.”

Isso indica que a Sra. White tinha visto o monumento escolhido, e provavelmente W. C. White também. Ele aprovou a compra. Uma carta do pastor Butler para W. C. White, em 10 de fevereiro daquele ano, discutia o custo do monumento “com a lápide e outras pedras”, dizendo que ele “será erigido tão logo a senhora mande a inscrição”. Fica claro que a família White estava envolvida na escolha do monumento.

Vinte anos mais tarde, em 1904, a Sra. White escreveu sobre uma sugestão diferente para a lápide de Tiago White: “‘Nunca!’, disse eu, ‘nunca! Ele fez, sozinho, o trabalho de três homens. Nunca será colocado sobre seu túmulo um monumento partido’” (Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 105). Só podemos conjecturar, mas pode ser que no contraste presente nessa sugestão, ela estivesse bastante satisfeita por ter um monumento bem moldado e simétrico colocado no cemitério da família.

Alguns têm perguntado sobre a suposta conexão do obelisco com a maçonaria. Ao verem o obelisco na sepultura da família, uns poucos até chegaram a supor que a própria Sra. White devia ter estado envolvida com o movimento maçônico. Essa é uma conclusão sem qualquer garantia. A Sra. White era uma franca opositora da maçonaria. Enquanto estava na Austrália, ela insistiu com um obreiro adventista que estava envolvido com a maçonaria para que cortasse sua conexão com o movimento. Ela também aconselhou outros contra o envolvimento com ordens maçônicas (ver Evangelismo, p. 617-623; Mensagens Escolhidas, v. 2, p. 120-140).

Qual a razão, então, para haver um obelisco no cemitério da família White? Evidentemente, a Sra. White não o considerava um símbolo inerente da maçonaria ou pagão, a despeito do fato – conhecido dela ou não – de que os maçons e os adoradores do Sol o haviam usado dessa maneira. Os símbolos têm o significado que as pessoas atribuem a eles. A própria cruz já foi um símbolo repugnante da opressão e crueldade de Roma, mas hoje, os cristãos de todo o mundo a consideram o símbolo da nossa redenção, por meio de Cristo.

Os símbolos podem mudar de significado. Quando Tiago White começou a publicar a Advent Review and Sabbath Herald como um jornal quinzenal (ele passou a ser semanal em setembro de 1853), cada edição vinha com a data da publicação e o nome convencional do dia da semana no qual era publicada, seja segunda-feira ou terça-feira. (O dia da publicação variava naquele tempo.) No entanto, logo ele mudou. A revista publicada na “quinta-feira [Thursday, em inglês], 12 de maio de 1853”, foi seguida, duas semanas depois, por outra exibindo a data de publicação como “quinto dia [Fifth-day, em inglês], 26 de maio de 1853”. Por várias décadas depois, o jornal designou o dia de sua publicação como “quinto dia” e “terceiro dia [Fifth-day e Third-day, em inglês], aparentemente por causa da preocupação com o fato de os dias da semana terem recebido nomes pagãos. Por volta da edição de 1º de janeiro de 1880, entretanto, o jornal voltou a usar os nomes convencionais dos dias da semana. Aparentemente, nossos pioneiros decidiram que o uso daqueles nomes não comprometia sua fé.

As pessoas que usam os nomes convencionais dos dias da semana não o fazem para expressar devoção aos deuses pagãos. Os nomes simplesmente não simbolizam mais esses deuses, a despeito de seu significado original. Da mesma maneira, embora obeliscos possam ter comunicado algum significado oculto lá pelo século 19, esse significado já não era levado em consideração por muitas pessoas, exceto os próprios maçons. Claramente, a Sra. White não sustentava essas crenças. (Esta resposta foi substancialmente modificada em relação àquela originalmente usada no site, em resposta à pergunta acima.)

(Extraído do livro 101 Perguntas Sobre Ellen White e Seus Escritos, de William Fagal, CPB)

terça-feira, julho 30, 2013

Bebidas alcoólicas: uma abordagem bíblica

O que a Bíblia diz sobre o consumo de vinho e outras bebidas alcoólicas?

A Igreja Adventista do Sétimo dia mantém em seu corpo doutrinário, há mais de cem anos, o ensinamento bíblico de que nosso corpo é o santuário do Espírito Santo (1Co 6:19, 20). Uma vez que o corpo é propriedade do Senhor, somos Seus mordomos nesse sentido – além de administrarmos para honra dEle diversos outros aspectos da nossa vida, tais como as posses materiais, que também Lhe pertencem.  Temos, portanto, diante do Senhor, a responsabilidade de cuidar da manutenção de nossa saúde a fim de poder servi-Lo melhor, ser mais felizes neste mundo e inspirar nossos semelhantes a agir na mesma direção para obtenção dos mesmos benefícios.

Fundamentados no conceito de mordomia do corpo, os adventistas pregam desde seus primórdios a completa abstenção de bebidas alcoólicas, crendo encontrar respaldo na Bíblia para identificar nesse procedimento um dos requisitos de Deus para o estilo de vida cristão. São chamadas de alcoólicas as bebidas cuja produção envolve fermentação de açúcares contidos, entre outros, em frutas e cereais. O vinho, a sidra e a cerveja, resultantes, respectivamente, da fermentação do suco de uva, do suco de maçã e da cevada, são apenas alguns exemplos. Hoje também existem as bebidas alcoólicas obtidas pelo processo de destilação, possuindo em geral teor alcoólico mais acentuado. Até os dias atuais, o compromisso de não ingerir bebidas alcoólicas – independentemente do gênero – é um dos itens que compõem o voto público que o futuro membro realiza por ocasião do seu batismo na Igreja Adventista.

Ocorre que muitos adventistas têm decidido ignorar o compromisso assumido nessa cerimônia, continuando (ou, em algum momento, passando) a inserir bebidas alcoólicas em seu cardápio eventual. Esses membros – cuja espiritualidade e sinceridade sem dúvida não podem nem devem aqui ser questionadas – argumentam que o fato de não haver em nenhum livro da Bíblia uma ordem direta da parte de Deus para que Seu povo como um todo se abstenha completamente do uso de vinho fermentado e de outras bebidas alcoólicas significa que Ele aprova esse uso, desde que moderado. Para eles, o que Deus repudia é, especificamente, o estado de embriaguez. Há, inclusive, por parte de alguns, uma concepção equivocada de que o vinho fermentado ocupa, na Bíblia, um patamar diferenciado daquele ao qual pertencem as bebidas alcoólicas obtidas de outras fontes.

Uma vez que essa atitude obviamente entra em conflito com um padrão de estilo de vida absolutamente consagrado por mais de um século de história do adventismo – consistindo, inclusive, em uma das marcas pelas quais o movimento vem chamando a atenção do mundo no decorrer desse tempo –, o autor destas linhas acredita que sérias considerações precisam ser feitas antes que se tome como correta a conclusão de que Deus permite o uso moderado de bebidas alcoólicas. O ensaio abaixo, sem a pretensão de esgotar de forma cabal o assunto, reúne o maior número de considerações que o autor julgou relevantes, argumentando com base, em primeiro lugar, nas Escrituras, e, por fim, nos escritos de Ellen G. White.

Aprovação ou tolerância de Deus?

Realmente, não há na Bíblia uma ordem divina proibitiva direta para a igreja abster-se totalmente das bebidas alcoólicas. Assim como também não há uma ordem direta da parte de Deus proibindo que os homens escravizem seu próximo, prática que ainda era presente entre cristãos nos tempos apostólicos (ver, por exemplo, a carta de Paulo a Filemom) e que persistiu por muitos séculos depois. Ninguém hoje em dia concordaria com o pensamento de que Deus aprova a escravatura, e, no entanto, em nenhuma parte da Bíblia existe uma proibição divina direta para ela. Sabemos que essa prática é ofensiva aos olhos de Deus porque conhecemos e prezamos os conceitos de graça, amor, respeito, justiça e fraternidade que a Palavra de Deus nos apresenta.

Por que, então, Deus parece haver aprovado a escravidão, especialmente nos tempos do Antigo Testamento? Havia, inclusive, dispositivos legais no código dado por Deus a Moisés que regularizavam o trato dos senhores com seus escravos (ver, por exemplo, Êx 21:16, 20). Outra pergunta semelhante diz respeito ao casamento. Se o Novo Testamento é tão taxativo quanto ao casamento monogâmico (com um parceiro apenas), por que Deus permitiu a prática da poligamia e do divórcio no passado (da mesma forma, com leis específicas regularizando o assunto no código mosaico)? A resposta foi dada por Jesus aos fariseus: “Por causa da dureza do vosso coração [...]; entretanto, não foi assim desde o princípio” (Mt 19:8).

A partir dessa importante afirmação feita por Cristo, conclui-se que Deus não deve ser visto como aprovando aquilo que Ele apenas tolerou temporariamente por causa da tremenda ignorância que motivava coletivamente a prática errônea. Muitos fariseus e outros homens judeus do primeiro século aproveitavam-se da brecha encontrada na lei para repudiar suas mulheres e casarem-se novamente com mulheres mais jovens. Jesus, porém, afirmou que o único motivo aceitável para o divórcio aos olhos de Deus é a prática de relações sexuais ilícitas (Mt 19:9).

Cabe aqui a observação de que Cristo, em diversas partes dos evangelhos, amplia a abrangência da lei de Deus, tornando-a ainda mais rigorosa quanto ao que se deve ou não fazer – contrariamente à ideia divulgada por muitas denominações cristãs de que Jesus veio para abolir a lei do Antigo Testamento ou trocá-la por um novo sistema, mais brando. Outro exemplo pode ser visto no capítulo 5 de Mateus, onde Cristo afirma que o mandamento “não matarás” inclui muito mais do que tirar literalmente a vida de alguém. Segundo Ele, lançar no rosto do próximo insultos ou termos de baixo calão já torna o indivíduo um sério candidato à perdição eterna (as palavras não poderiam ser mais fortes: “estará sujeito ao inferno de fogo” [5:22]).

Pois bem, Deus também tolerou (sem aprovar – e mais à frente se discutirão os textos bíblicos que indicam o desprazer de Deus nesse sentido) o uso de vinho e outras bebidas alcoólicas, quando tirou os israelitas do Egito. Eis uma das passagens mais representativas: “Esse dinheiro, dá-lo-ás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, ou ovelhas, ou vinho, ou bebida forte [aquela produzida a partir de outros frutos da terra, com teor alcoólico superior ao do vinho], ou qualquer coisa que te pedir a tua alma; come-o ali perante o Senhor, teu Deus, e te alegrarás, tu e a tua casa” (Dt 14:26). Note-se aqui que a lei mosaica está permitindo tanto o uso do vinho fermentado quanto da bebida forte (cuja ação entorpecente, em alguns casos, pode ser mais intensa que a do vinho). Os que advogam a permissão divina atual para o consumo de vinho com base em textos como esse, também deveriam considerar exatamente da mesma forma o caso das outras bebidas, pois a Bíblia coloca ambos os gêneros (vinho e bebidas fortes) no mesmo patamar.

No entanto, considerando os efeitos nocivos (físicos e sociais) do uso das chamadas bebidas fortes – tão amplamente conhecidos por todos nós e fartamente exemplificados no texto sagrado –, é impossível admitir sem, ao menos, alguma reserva que Deus aprecie o consumo desse item entre Seus filhos. Sendo assim, por que teria permitido seu uso em Deuteronômio? A explicação para isso só pode ser encontrada nas palavras de Jesus citadas acima: foi a dureza de coração, a grosseira ignorância de um povo que acabava de sair de 400 anos de escravidão numa nação com um estilo de vida e de adoração dos mais abomináveis da história deste mundo, que motivou essa tolerância temporária da parte de Deus.

Resumindo, o pecado sempre foi ofensivo aos olhos do Senhor, em todas as épocas, mas é especialmente a partir dos tempos do Novo Testamento que o conhecimento do significado, da malignidade e das consequências do pecado ficou totalmente claro e patente aos olhos da igreja. É por esse motivo que os requisitos de Deus quanto ao comportamento de Seus filhos hoje parecem ser ainda mais rigorosos do que no passado: hoje temos conhecimento claro da batalha espiritual invisível que o Espírito Santo e os anjos de Deus travam contra Satanás e seus agentes pelo controle dos seres humanos. E sabemos (ou deveríamos saber) que temos um papel importante a desempenhar no sentido de favorecer e contribuir com o trabalho do Espírito de Deus para a santificação da nossa própria vida e da vida dos nossos semelhantes. Santificação significa abandono gradativo do pecado e dos maus hábitos, paralelamente a uma entrega cada vez maior à vontade do nosso Criador. Santificação é o efeito de nos separarmos para Deus e nos consagrarmos diariamente a Ele.

A visão bíblica da ingestão de bebidas alcoólicas
           
A primeira menção ao vinho fermentado que aparece na Bíblia se encontra em Gênesis 9. O texto relata que Noé, após o dilúvio, plantou uma vinha e se embriagou com a bebida por ele produzida. Bêbado, fez coisas típicas de uma pessoa com a mente entorpecida – coisas, diga-se de passagem, que a razão e a mente ajuizada dirigida por princípios éticos não nos permitem fazer quando estamos sóbrios. Muitos hoje poderiam achar graça na história, assim como muitos se divertem com as tolices que uma pessoa é capaz de fazer ou dizer quando está sob o efeito do álcool. A Bíblia, porém, trata o episódio como sendo da maior gravidade. Por causa de um momento prazeroso (e ninguém negará o prazer envolvido no ato de consumir o vinho: além do sabor agradável, existe a sensação de leveza e descontração proporcionada pelo efeito entorpecente da bebida), a vergonha se abateu sobre uma família e uma nação futura foi amaldiçoada.

Em Deuteronômio, se registrou a permissão tolerante de Deus para o consumo do vinho e de bebida fermentada em função da rudeza do Seu povo recém-saído da escravidão, conforme se viu acima. É também sob esse prisma que deveriam ser compreendidas passagens como a seguinte: “Fazes crescer a relva para os animais e as plantas, para o serviço do homem, de sorte que da terra tire o seu pão, o vinho, que alegra o coração do homem, o azeite, que lhe dá brilho ao rosto, e o alimento, que lhe sustém as forças” (Sl 104:14, 15). Existem duas palavras para a bebida feita com uvas no Antigo Testamento, yayim (normalmente o vinho fermentado, embriagante) e tirosh (suco de uva). No caso do Salmo em questão, a palavra é yayim.

Se bem que muitos considerem tratar-se de uma referência ao puro suco de uva, é possível que a recomendação de Paulo em 1 Timóteo 3:8 – “Semelhantemente, quanto a diáconos, é necessário que sejam respeitáveis, de uma só palavra, não inclinados a muito vinho, não cobiçosos de sórdida ganância” – também se encaixe no mesmo contexto da permissão tolerante de Deus em face, agora, da conversão ao cristianismo de indivíduos provenientes da licenciosa cultura greco-romana. Trata-se de um texto difícil, não há dúvida, mas uma coisa é certa: nenhuma doutrina (ou modo de proceder), do ponto de vista de nosso relacionamento com Deus, deveria ser estabelecida a partir de textos bíblicos isolados. O conjunto, o mais completo possível, é que deve sempre ser nosso guia.
           
Paralelamente a essa permissão tolerante, contudo, é absolutamente relevante a expressa (e ameaçadora) proibição de bebidas alcoólicas no caso daqueles que estavam envolvidos no serviço religioso: “Falou também o Senhor a Arão, dizendo: Vinho ou bebida forte tu e teus filhos não bebereis quando entrardes na tenda da congregação, para que não morrais; estatuto perpétuo será isso entre as vossas gerações, para fazerdes diferença entre o santo e o profano e entre o imundo e o limpo e para ensinardes aos filhos de Israel todos os estatutos que o Senhor lhes tem falado por intermédio de Moisés” (Lv 10:8-11). Deus também proibia diretamente o uso de vinho e bebida forte no caso dos nazireus, que eram homens ou mulheres escolhidos por Deus desde o nascimento para um propósito especial, ou que faziam voto de separação/consagração especial a Deus (Nm 6:1-4; veja um exemplo de nazireado por escolha divina no caso de Sansão, em Jz 13).

No caso dos sacerdotes (e, por extensão, também dos nazireus), note a finalidade da proibição: (1) evitar que a mente fique embotada e perca – seja de forma temporária ou definitiva – a noção do que é certo e puro aos olhos de Deus; e (2) evitar que fosse interrompido o cumprimento da responsabilidade de ensinar (por preceito e exemplo) a vontade de Deus aos semelhantes. Alguém poderia duvidar de que o Senhor também anelasse a sobriedade do restante de Seu povo naquela ocasião, embora não dispusesse isso de modo direto? Por que, no entanto, a proibição direta ficou restrita a duas classes? O fato de os sacerdotes e os nazireus constituírem um modelo de conduta em muitos aspectos para o povo de Israel torna a ordem divina totalmente adequada.

Considerando esse fato, seria ir além do que está escrito admitir que o mesmo exemplo de sobriedade exigido dos sacerdotes e nazireus é requerido do povo do Senhor nos dias de hoje? Cremos que não. Recorde-se o que 1 Pedro 2:9 registra acerca da igreja cristã: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa [separada, consagrada], povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a Sua maravilhosa luz.” “A fim de proclamardes”: a verdade é proclamada tanto por meio do ensino da Palavra quanto por meio de um comportamento santificado na Palavra do Senhor. Muitos diriam, inclusive, que o exemplo comportamental de vida é mais poderoso que o testemunho discursivo.

Um exemplo maravilhoso de fidelidade e pureza foi demonstrado por Daniel e seus amigos na corte de Babilônia (Dn 1). Ao lhes ser designado vinho (bem como alimentos impuros ou impróprios para consumo), o profeta – ainda muito jovem nessa época – recusou-se a bebê-lo. E se deve notar que, segundo os padrões então em voga, o vinho da corte babilônica deveria ser de qualidade e sabor indiscutíveis – o texto bíblico declara que era o vinho que o próprio rei bebia. Os termos da narrativa são extremamente significativos: “Resolveu Daniel, firmemente, não contaminar-se com as finas iguarias do rei, nem com o vinho que ele bebia; então, pediu ao chefe dos eunucos que lhe permitisse não contaminar-se” (Dn 1:8). Observe bem a força da palavra usada: “contaminar-se” com o vinho. A Bíblia, por fim, deixa claro que Daniel foi honrado pelo Senhor devido a essa atitude de domínio próprio. Deveríamos rejeitar a ideia de que a atitude de Daniel serve de exemplo para os cristãos (especialmente jovens) de hoje? Dificilmente um cristão sincero concordaria com isso.

No livro de Habacuque é pronunciada uma maldição contra aquele que oferece bebida ao seu próximo. Primeiramente, Deus declara: “Assim como o vinho é enganoso, tampouco permanece o arrogante, cuja gananciosa boca se escancara como o sepulcro e é como a morte, que não se farta” (2:5) E, depois: “Ai daquele que dá de beber ao seu companheiro, misturando à bebida o seu furor, e que o embebeda para lhe contemplar as vergonhas” (2:15).

Mencione-se, como encerramento desta seção, o capítulo 35 do livro de Jeremias. Ali, Deus exalta a atitude dos recabitas, que, em obediência ao ensinamento de seu patriarca, Jonadabe (filho de Recabe), se recusaram a beber o vinho que lhes era oferecido. O Senhor, por meio do seu profeta, exalta a atitude dos recabitas, confrontando-a com a infidelidade demonstrada por Jerusalém em relação a Ele.

O tratamento dado à bebida alcoólica em Provérbios

O livro de Provérbios constitui uma fonte essencial do Antigo Testamento no tratamento do tema das bebidas alcoólicas. Em nenhum outro texto a desaprovação de Deus é apresentada de forma mais contundente. É bom lembrar que todo o conteúdo do livro deve ser lido e meditado à luz do propósito geral explicitado no início da obra: “Para aprender a sabedoria e o ensino; para entender as palavras de inteligência; para obter o ensino do bom proceder, a justiça, o juízo e a equidade; para dar aos simples prudência e aos jovens, conhecimento e bom siso” (Pv 1:2-4); mas, sobretudo, à luz da máxima: “O temor do Senhor é o princípio do saber, mas os loucos desprezam a sabedoria e o ensino” (1:7).

Embora não se tratem de ordens diretas de Deus para abstinência de vinho e bebida forte, os seguintes trechos da obra de Salomão contêm conselhos e repreensões que, originadas em Deus por meio da iluminação da mente do rei Salomão, deveriam ser encaradas como a expressão da vontade do Senhor nessa matéria, para o nosso bem:

Provérbios 20:1: “O vinho é escarnecedor, e a bebida forte, alvoroçadora; todo aquele que por eles é vencido não é sábio.”

Provérbios 23:29-35: “Para quem são os ais? Para quem, os pesares? Para quem, as rixas? Para quem, as queixas? Para quem, as feridas sem causa? E para quem, os olhos vermelhos? Para os que se demoram em beber vinho, para os que andam buscando bebida misturada. Não olhes para o vinho, quando se mostra vermelho, quando resplandece no copo e se escoa suavemente. Pois ao cabo morderá como a cobra e picará como o basilisco. Os teus olhos verão coisas esquisitas, e o teu coração falará perversidades. Serás como o que se deita no meio do mar e como o que se deita no alto do mastro e dirás: Espancaram-me, e não me doeu; bateram-me, e não o senti; quando despertarei? Então, tornarei a beber.”

A bebida alcoólica provoca no ser humano um estado de ânimo incompatível com o espírito de sabedoria que vem do temor de Deus. Além disso, normalmente, os contextos sociais em que se tomam bebidas alcoólicas são contextos nos quais dificilmente se conseguiria invocar a presença de Deus. Com base na leitura apenas do primeiro dos dois textos, alguém poderia argumentar que o “ser vencido” pelas bebidas alcoólicas estaria se referindo somente à embriaguez, ou seja, não haveria problema nenhum diante de Deus em beber apenas um pouco e não chegar àquele estado. Mas o segundo trecho não deixa dúvidas: “Não olhes”, não te aproximes... A linha que separa a sobriedade da embriaguez pode ser muito tênue – aquele que bebe considera a bebida inofensiva, crendo que terá sempre o controle sobre ela; no entanto, conforme o provérbio, o efeito do álcool é traiçoeiro e muitas vezes imprevisível. Além disso, quem bebe, mesmo que não se embriague, está servindo de exemplo para outro que talvez não tenha o mesmo nível de autocontrole. E a Bíblia responsabiliza aquele que, mesmo de forma indireta, induz o seu próximo à queda.

Provérbios 31:4, 5: “Não é próprio dos reis, ó Lemuel, não é próprio dos reis beber vinho, nem dos príncipes desejar bebida forte. Para que não bebam, e se esqueçam da lei, e pervertam o direito de todos os aflitos.”

Se para os reis não é próprio, para os cidadãos comuns o seria? Evidentemente que não, e pelos mesmos motivos. O ato de beber prejudica a sensibilidade espiritual e a capacidade de juízo e raciocínio e, portanto, não combina com a piedade de um filho de Deus. O simples fato de se desejar tal tipo de bebida é condenado pela Bíblia já nos tempos do Antigo Testamento.

Vinho para uso medicinal e o milagre em Caná

Provérbios 31:6, 7 traz o seguinte: “Dai bebida forte aos que perecem e vinho, aos amargurados de espírito; para que bebam, e se esqueçam da sua pobreza, e de suas fadigas não se lembrem mais.” Interessantíssimo é esse texto em que o uso da bebida alcoólica é sugerido como meio anestésico em caso de indivíduos desenganados, a fim de aliviar-lhes o sofrimento nos últimos momentos. Tratava-se de uma época em que não havia à disposição os métodos de que hoje dispomos para diminuição da sensibilidade de pacientes terminais, com dor crônica ou em processo cirúrgico. Ofereceram, inclusive, para Jesus crucificado uma poção embriagante, a qual o Senhor recusou a fim de manter as faculdades totalmente despertas em sua prova final (Mt 27:34).

Há um texto no Novo Testamento que pode estar se referindo a uma questão semelhante: “Não continues a beber somente água; usa um pouco de vinho, por causa do teu estômago e das tuas frequentes enfermidades” (1Tm 5:23). Aqui, Paulo aconselha Timóteo a não beber apenas água – possivelmente devido à dificuldade, muitas vezes, de encontrar água potável durante as viagens missionárias –, mas também “um pouco de vinho”. Ora, no texto original do Novo Testamento, existe uma só palavra grega (oinos) para designar tanto o vinho fermentado, como o puro suco de uva. O contexto é que deve orientar a tradução nesses casos.

Alguns afirmam que Paulo aqui não poderia estar aconselhando Timóteo a beber vinho fermentado, porque estaria contrariando o ensino bíblico acerca das bebidas alcoólicas. É possível que seja assim, uma vez que suco de uva sabidamente é um rico alimento e um poderoso remédio natural (algumas clínicas contemporâneas tratam enfermidades gravíssimas utilizando dieta a base desse suco). A mensagem de Deus por intermédio do profeta Isaías acerca do “vinho [tirosh] num cacho de uvas” é a seguinte: “Não o desperdices, pois há bênção nele.” No entanto, se Paulo estiver se referindo ao vinho alcoólico, observe sua ênfase de que deve ser pouco e com propósitos medicinais. Essa passagem especificamente é de difícil compreensão, mas seja ela qual for, o autor deste texto acredita que o princípio bíblico está aqui preservado.

Alguns acreditam que a bebida (oinos) fabricada miraculosamente por Cristo nas bodas de Caná (João 2) deve ter sido o vinho fermentado. Baseiam essa conclusão no comentário feito pelo mestre-sala de que, contrariamente ao que estava acontecendo naquela festa, normalmente se servia primeiro o vinho bom e, depois que todos já haviam bebido fartamente, é que se servia o inferior. O argumento é o de que o mestre-sala só podia estar falando de vinho alcoólico: este entorpeceria os sentidos dos seus bebedores no início da festa, de modo que eles não se incomodariam com a qualidade inferior do vinho servido por último. 

Em primeiro lugar, embora tenha sua força, o argumento não é conclusivo, pois também se poderia argumentar que talvez se tratasse de um costume estabelecido naquele contexto e época o oferecimento do melhor da casa já no início da festa.

Em segundo lugar, Cristo não poderia ter fabricado vinho alcoólico, cujo efeito sobre muitos dos convidados, após beberem “fartamente” (palavra utilizada pelo próprio texto), certamente seria aquele descrito em Provérbios. Ele estaria trazendo para Si, em última instância, a responsabilidade pela intoxicação alcoólica daquelas pessoas. Além disso, o Senhor não poderia contrariar o ensino que o Espírito posteriormente transmitiria através de Paulo: “Não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá; porque o santuário de Deus, que sois vós, é sagrado” (1Co 3:16, 17). E, além disso: “Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (10:31).

Há, ainda, uma terceira consideração, que é a de que o suco puro da uva é um símbolo utilizado por Cristo para o Seu sangue, cujo derramamento nos dá vida e nos purifica de todo o pecado. Há, no milagre efetuado em Caná (o primeiro do ministério público de Jesus), um significado teológico extraordinário ligado à morte do Salvador e à mudança por ela operada na vida daqueles que O aceitam. Assim, definitivamente, o vinho produzido pelo Senhor era um suco de uva de qualidade tão excepcional, que impressionou o mestre-sala e chamou a atenção do público para o ministério do Senhor.

O papel especial da igreja cristã no tempo do fim

Já vimos que o Novo Testamento considera a igreja cristã como sendo o verdadeiro sacerdócio e a nação santa (separada). No Antigo Testamento, havia indivíduos especialmente separados para servir ao Senhor: os sacerdotes e os nazireus. Eles deveriam ser instrumentos privilegiados nas mãos de Deus para instruir o povo do Senhor nos Seus santos caminhos, tanto pelo ensino direto, quanto pela conduta de vida exemplar.

A mesma responsabilidade no sentido de servir de modelo de boas obras, segundo a vontade do Senhor, é transferida pelo Novo Testamento a toda a igreja cristã. E se a igreja cristã como um todo são os sacerdotes e nazireus modernos, não parece ser uma distorção da mensagem bíblica entender que o mesmo exemplo de domínio próprio/abstinência que Deus ordenou a essas duas classes no Antigo Testamento é o mesmo que Ele espera do povo cuja missão é preparar o mundo para a segunda vinda de Cristo. E é precisamente por esse motivo que Cristo e Seus discípulos enfatizaram tanto a necessidade de pureza e retidão moral por parte da igreja: “Aquele que diz estar nEle, também deve andar como Ele andou” (1Jo 2:6).

“Finalmente, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja isso o que ocupe o vosso pensamento” (Fp 4:8).

“Quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupiscências do engano, e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade” (Ef 4:22-24).

“Ora, as obras da carne são conhecidas e são: prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos declaro, como já, outrora, vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais coisas praticam. Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio. Contra estas coisas não há lei” (Gl 5:19-23).

“Torna-te, pessoalmente, padrão de boas obras. No ensino, mostra integridade, reverência, linguagem sadia e irrepreensível, para que o adversário seja envergonhado, não tendo indignidade nenhuma que dizer a nosso respeito” (Tt 2:7, 8).

“Ninguém despreze a tua mocidade; pelo contrário, torna-te padrão dos fiéis, na palavra, no procedimento, no amor, na fé, na pureza” (1Tm 4:12).

“Possa Ele vos confirmar os corações, para que sejais irrepreensíveis em santidade diante de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 3:13).

“Pois Deus não nos chamou para a impureza, mas para a santificação” (1Ts 4:7).

“Não vos embriagueis com vinho, em que há devassidão, mas enchei-vos do Espírito” (Ef 5:18).

“Não entristeçais o Espírito Santo de Deus, no qual fostes selados para o dia da redenção” (Ef 4:30).

Considerações finais (o pensamento de Ellen G. White)

Após considerar o conjunto das informações apresentadas pela Bíblia acerca do uso de vinho e de outras bebidas alcoólicas, bem como as exortações bíblicas acerca de como deve ser a vida daqueles que se entregam a Jesus e passam a fazer parte da comunidade de crentes pré-advento (com a importante missão de representar seu Salvador e difundir Sua vontade diante de um mundo que perece nestes últimos dias de história da Terra), cremos não ser sensato sustentar a posição de que Deus aprova o uso, mesmo que moderado, dessas bebidas.

Embora não haja proibição expressa no Antigo Testamento, salvo com relação ao sacerdócio e ao nazireado, a forma como o texto sagrado trata do assunto indica qual é a posição divina em relação a ele. O uso de bebidas alcoólicas entorpece os sentidos, afastando a mente das coisas espirituais. Mesmo que o indivíduo tenha o hábito de consumir apenas doses muito pequenas, de vez em quando e, aparentemente, não haja o menor prejuízo para sua saúde, isso não pode ser usado como argumento a favor do uso de vinho ou outras bebidas fermentadas ou destiladas, assim como o consumo eventual e moderado de carne suína (aparentemente inofensivo) não pode ser usado como licença para a transgressão da proibição alimentar feita por Deus. Pecado é pecado, independentemente do tamanho. Aliás, a Bíblia adverte que “aquele que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tg 4:17), e também que a misericórdia de Deus é para aquele que confessa e procura abandonar a prática da transgressão (Pv 28:13).

Além disso, é importante frisar novamente a questão do exemplo. Cada um de nós é responsável, em algum grau, pelo exemplo que outros veem em nós. Podemos até ser “autocontrolados” no sentido de usarmos da bebida alcoólica de forma moderada, mas aqueles que são influenciados pelo nosso exemplo poderão não ser. As terríveis consequências do uso do álcool na vida de incontáveis indivíduos e famílias são por demais conhecidas para que se precise enumerá-las aqui. O consumo moderado, digamos “social” ou “familiar”, normalmente é a porta de entrada do vício. E mesmo que não haja consequências físicas, materiais ou sociais, existe o perigo espiritual: desafiar a vontade de Deus em coisas pequenas (“É só um pouquinho; e é tão gostoso... que mal há?”) abre espaço para o desrespeito e a controvérsia em coisas cada vez mais sérias.

Agora, uma consideração em especial quanto aos adventistas. Temos aprendido – e o apoio bíblico para essa compreensão é vasto – que Deus despertou um grupo de crentes no século 19 para dar início a um movimento religioso de amplitude mundial. A Igreja Adventista do Sétimo Dia foi suscitada pelo Senhor com o propósito de restaurar os pontos da verdade que, após um processo iniciado séculos antes, ainda haviam ficado por ser restaurados, incluída entre eles a reforma de saúde. Além dos diversos homens e mulheres que estudaram as Escrituras e receberam iluminação especial do Espírito Santo para discernir entre o certo e o errado ao formar o corpo doutrinário do movimento, Deus ainda concedeu à Sua igreja o dom profético, manifestado na pessoa de Ellen G. White.

Em 6 de junho de 1863, essa pioneira do adventismo teve aquela que ficou conhecida como a “grande visão da reforma da saúde”. A partir de então, ela começou a escrever e pregar fervorosamente sobre o assunto. Graças à orientação profética e ao trabalho de gerações de irmãos na difusão da mensagem da saúde, a Igreja Adventista do Sétimo Dia passou a ser reconhecida mundialmente pela importância que confere a esse aspecto da vida – um reconhecimento que, infelizmente, é prejudicado em grande medida nos nossos dias pela intemperança dos membros da igreja. A seguir, são reproduzidos alguns trechos de Ellen G. White, extraídos de obras publicadas em português. Cremos que são muito significativos e lançam mais alguma luz sobre o tema das bebidas alcoólicas, além do que já vimos acima.

“Qualquer hábito que não promova ação saudável no organismo humano degrada as faculdades mais altas e mais nobres. Hábitos errôneos no comer e no beber levam a erros de pensamento e de ação. A tolerância para com o apetite fortalece as propensões sensuais, dando-lhes ascendência sobre as faculdades mentais e espirituais. ‘Que vos abstenhais das concupiscências carnais, que combatem contra a alma’ (1Pd 2:11) é a linguagem do apóstolo Pedro. Muitos admitem esta advertência como aplicando-se apenas aos licenciosos; mas ela tem significado mais amplo; guarda contra toda satisfação danosa do apetite ou das paixões. É uma advertência muito vigorosa contra o uso de estimulantes e narcóticos tais como chá, café, fumo, álcool e morfina. A tolerância para com isto pode muito bem ser classificada entre as concupiscências que exercem nociva influência sobre o caráter. Quanto mais cedo são esses hábitos formados, mais firmemente eles mantêm suas vítimas na escravidão da condescendência e mais seguramente rebaixarão eles a norma de espiritualidade” (Review and Herald, 25 de janeiro de 1881, republicado em Conselhos Sobre o Regime Alimentar, p. 62, 63).

“Ensinai vossos filhos a evitar os estimulantes. Quantos estão ignorantemente promovendo neles um apetite por essas coisas! Na Europa vi enfermeiras chegando aos lábios de pequeninos inocentes o copo de vinho ou cerveja, cultivando assim neles o gosto pelos estimulantes. Ao crescerem, aprendem a depender mais e mais dessas coisas, até que, a pouco e pouco, são vencidos, sendo arrastados para além do alcance do auxílio” (Conselhos Sobre Regime Alimentar, p. 236).

Pergunta-se: qual é o exemplo cristão que eu, pai adventista, quero deixar para os meus filhos? Estou ensinando meus filhos a agir como Daniel, ou a condescender com o uso do que Deus considera impróprio para consumo humano, colocando, inclusive, a saúde e o caráter deles em risco? Estou ensinando meus filhos a respeitar (e amar) um ensinamento básico que acompanha a Igreja Adventista do Sétimo Dia desde os seus primórdios, ou os estou ensinando a duvidar dos rumos assumidos pela igreja nesse ponto? Quem me garantirá que meus filhos não começarão a questionar ou a desprezar outros ensinamentos da igreja e o próprio papel especial dela no tempo do fim? Como fica, enfim, o compromisso que assumi diante de Deus e da igreja, quando fui batizado, de me abster das bebidas alcoólicas e não dar motivo para escândalo tanto aos de dentro como aos que me observam de fora? Jesus disse: “Ai do homem por quem os escândalos vêm” (Mt 18:7). As implicações corrosivas do mau exemplo são extensas, sem a menor dúvida.

Em relação ao beber moderado, o alerta da autora é incisivo: “A intoxicação é produzida tão positivamente pelo vinho, cerveja e sidra, como pelas bebidas mais fortes. O uso delas suscita o gosto pelas outras, estabelecendo-se assim o hábito da bebida. O beber moderado é a escola em que os homens se educam para a carreira da embriaguez. Todavia, tão perigosa é a obra desses estimulantes mais brandos que a vítima entra no caminho da embriaguez antes de suspeitar o perigo em que se encontra” (A Ciência do Bom Viver, p. 332).

Por último, e com eles encerra-se este ensaio, seguem trechos de alguns escritos, compilados nas páginas 154 a 156 do livro Conselhos Sobre o Regime Alimentar:

“Daniel avaliava suas capacidades humanas, mas nelas não confiava. Sua confiança estava na força que Deus prometeu a todos os que forem ter com Ele em humilde dependência, confiando inteiramente no Seu poder. Ele propôs em seu coração não se contaminar com a porção do manjar do rei, nem com o vinho que ele bebia; pois sabia que semelhante regime não lhe fortaleceria as faculdades físicas nem aumentaria sua capacidade mental. Não usaria vinho, nem qualquer outro estimulante artificial; não faria coisa alguma que lhe entorpecesse a mente; e Deus lhe deu ‘o conhecimento e a inteligência em todas as letras e sabedoria’, e também ‘entendimento em toda visão e sonhos’ (Dn 1:17).

“Os pais de Daniel educaram-no, em sua infância, em hábitos de estrita temperança. Haviam-lhe ensinado que devia conformar-se com as leis da natureza em todos os seus hábitos; que seu comer e beber tinham influência direta sobre sua natureza física, mental e moral, e que ele era responsável a Deus por suas capacidades; pois considerava a todas como dom de Deus, e não devia, por qualquer procedimento, atrofiá-las ou mutilá-las. Em resultado deste ensino, em sua mente exaltava a lei de Deus, e a reverenciava no coração.

“Durante os primeiros anos de seu cativeiro, passou Daniel por uma prova severa que o devia familiarizar com a grandeza da corte, com a hipocrisia e o paganismo. Estranha escola, com efeito, para prepará-lo para uma vida de sobriedade, diligência e fidelidade! E todavia viveu incorrupto pela atmosfera do mal de que se achava rodeado. A experiência de Daniel e seus jovens companheiros ilustra os benefícios que podem provir de um regime abstêmio, e mostra o que Deus fará em favor dos que com Ele cooperarem na purificação e enobrecimento da alma. Eram eles uma honra a Deus, e uma viva e brilhante luz na corte de Babilônia.

“Nesta história ouvimos a voz de Deus dirigindo-se a nós individualmente, ordenando-nos que reunamos todos os preciosos raios de luz sobre este assunto da temperança cristã, e nos coloquemos na devida relação para com as leis da saúde” (Christian Temperance and Bible Hygiene, p. 22, 23).

“Que seria se Daniel e seus companheiros se tivessem comprometido com aqueles funcionários pagãos, e tivessem cedido à pressão do momento, comendo e bebendo como era costumeiro entre os babilônios? Esse único exemplo de desvio do princípio ter-lhes-ia enfraquecido o senso da justiça e sua aversão ao mal. A condescendência com o apetite teria implicado no sacrifício do vigor físico, da clareza do intelecto e do poder espiritual. Um só passo errado, provavelmente teria levado a outros, até que, cortada sua ligação com o Céu, tivessem sido arrebatados pela tentação” (Review and Herald, 25 de janeiro de 1881).

“Quando reconhecemos as ordens de Deus, vemos que Ele requer que sejamos temperantes em todas as coisas. A finalidade de nossa criação é glorificarmos a Deus em nosso corpo e nosso espírito, que a Ele pertencem. Como podemos fazer isso se condescendemos com o apetite, para prejuízo das faculdades físicas e morais? Deus requer que apresentemos nosso corpo em sacrifício vivo. É-nos, pois, imposto o dever de preservar esse corpo na melhor condição de saúde, a fim de que possamos cumprir o que Ele de nós requer. ‘Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para a glória de Deus’ (1Co 10:31)” (Testimonies, v. 2, p. 65).

(Renato Groger, mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero e bacharel em Teologia pelo Unasp; artigo escrito para o blog www.criacionismo.com.br)

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