quarta-feira, abril 03, 2013

A Bíblia entre os mitos: que diferença!

Existe diferença entre a Bíblia e os mitos do Antigo Oriente Próximo?

Vivemos em uma época de reducionismo. Isso se torna especialmente evidente pelo uso comum da palavra “apenas”. Os reducionistas dizem: “A mente humana é apenas um sistema complexo de matéria”, ou “A moralidade é apenas um subproduto da evolução para a sobrevivência do grupo.”[1] Quando se trata de estudos bíblicos, normalmente o reducionismo assume a seguinte forma: “As narrativas do Gênesis são apenas mais um mito do Antigo Oriente Próximo.” Os pós-evangélicos usam hoje, regularmente, esses argumentos. Em nível popular, escritores como Rachel Held Evans comentam sobre os “notadamente semelhantes” relatos da criação e do dilúvio do Antigo Oriente Próximo em relação aos encontrados em Gênesis. Compreender Gênesis como não histórico, um mito não científico, que contém os mesmos “recursos literários humanos” e “pressupostos cosmológicos” que os do Antigo Oriente Próximo, teria sido, segundo ela mesma, “libertador”.[2]

Peter Enns é o estudioso pós-evangélico mais frequentemente associado com essa visão. Em seu livro Inspiration and Incarnation (Inspiração e Encarnação), Enns procurou mostrar que Deus se ajustou às culturas do Antigo Oriente Próximo, usando formas literárias não históricas e não científicas em Gênesis (e em outros escritos) para comunicar sua mensagem.[3] Muitos seguiram sua liderança, especialmente aqueles que procuram resolução da [suposta] discórdia percebida entre fé e ciência.


No contexto da academia secular, tais pontos de vista são inquestionáveis. O paradigma dominante se originou na Escola “História das Religiões”. Essa perspectiva do século 19 considerava que a religião monoteísta era originária das classes mais baixas da sociedade primitiva, da criação do xamanismo tribal como um meio de afirmar o poder sobre os mais fisicamente ou socialmente poderosos.[4] Essas crenças xamanísticas teriam evoluído para o politeísmo, em seguida para o henoteísmo e, eventualmente, para o monoteísmo. A Escola baseou sua visão na semelhança religiosa de culturas antigas e procurou encaixar todos os dados em um paradigma linear, evolutivo. Dentro desse paradigma, as narrativas do Gênesis tornaram-se “apenas” mais um mito ao lado dos mitos de outras culturas antigas. No início do século 20, os estudiosos começaram a criticar o quanto exatamente certas crenças se encaixam dentro desse paradigma. Eventualmente, a visão acadêmica predominante se desviou do modelo linear, embora a interpretação da narrativa do Gênesis “apenas” como mais um mito da criação continue a prevalecer.

A razão disso?  Há semelhanças óbvias entre Gênesis e outras histórias antigas e modernas das origens. Os estudiosos que mantêm esse ponto de vista têm apresentado as semelhanças como as características mais essenciais do Gênesis e as diferenças como aspectos secundários e não essenciais das narrativas. Mas e se isso for um equívoco? E se as diferenças forem os aspectos essenciais no Gênesis e na visão de mundo do Antigo Testamento? E se Gênesis e outras histórias do Antigo Oriente forem semelhantes da mesma maneira que minha minivan KIA e uma Ferrari são semelhantes? “Ei, ambas têm rodas e um volante, portanto, a Ferrari é ‘apenas’ um outro tipo de carro. Quer trocar?” Parece-me que em Gênesis, como na venda de automóveis, as diferenças são muito mais significativas do que as semelhanças.

John Oswalt, professor de Hebraico e Estudos do Antigo Testamento no Seminário Teológico de Asbury, fez essa defesa recentemente em seu livro The Bible Among the Miths (A Bíblia Entre os Mitos). Ele se baseia em trabalhos mais antigos de G. E. Wright, da Universidade de Harvard, para apresentar sua tese, alegando que o trabalho de Wright ainda permanece como uma crítica eficiente da visão predominante.[5] Uma vez que os dados do Oriente Antigo não se alteraram significativamente em quase 70 anos, Oswalt afirma que a principal razão por trás da persistência da visão reducionista não são os dados em si, mas “convicções teológicas e filosóficas anteriores”, sustentadas por aqueles que militam nesse campo.[6] O livro é dividido em duas seções: a primeira discute a Bíblia e o gênero dos mitos antigos; a última discute a escrita da Bíblia e da história antiga. Embora ambos os temas sejam altamente relevantes para a apologética cristã, este último tem sido mais plenamente abordado em outros lugares e, assim, este artigo, em grande parte, se concentrará na primeira seção e suas implicações para a tarefa apologética.[7]

A primeira seção faz uma boa introdução para os vários significados contemporâneos de mito: o sentido etimológico, que salienta a “falsidade da coisa que está sendo descrita”;[8] o sociológico, que destaca se o grupo vê ou não algo como verdade, mas ignora ou não se a coisa é realmente verdade; o literário, que significa simplesmente uma certa maneira de escrever; o fenomenológico, que destaca as características comuns dos escritos que têm sido chamado de mitos. Oswalt passa a maior parte de sua escrita neste último significado, pois este é o sentido frequentemente utilizado em estudos bíblicos. Ele mostra que os defensores dessa visão procuram definir mito como aquilo que busca relacionar o natural com o humano, o ideal com o real, o pontual com o contínuo. Após a análise desses pontos de vista, ele conclui, mostrando que um dos aspectos essenciais de definições descritivas ou fenomenológicas do mito é o que ele chama de “continuidade” ou “correspondência”; “que todas as coisas são contínuas umas com as outras”.[9]

Esse pressuposto central de continuidade explica a quase universal atribuição antiga de características humanas ao mundo natural. Ele explica o quadro cíclico através do qual a maior parte do mundo antigo via a realidade, para não mencionar a crença de que a reconstituição dos mitos traz satisfação presente para aqueles que o reconstituem. Após essa análise, Oswalt faz esta afirmação provocativa sobre a relação da Bíblia com esse mundo dos mitos:

“Assim, o mito é uma forma de expressão, seja literária ou oral, em que as continuidades entre os reinos humano, natural e divino são expressas e concretizadas. Ao reforçar essas continuidades, o mito busca assegurar o funcionamento ordenado da natureza e da sociedade humana. O fato é que a Bíblia tem um entendimento completamente diferente da existência e das relações desses reinos. Como resultado, ela funciona de forma inteiramente diferente. Suas narrativas não convertem a realidade divina contínua fora do mundo invisível real em uma reflexão visível dessa realidade. Pelo contrário, são um ensaio dos atos não repetíveis de Deus em um tempo e espaço identificável, em concerto com os seres humanos [...] Sua finalidade é provocar escolhas e comportamentos humanos por meio da memória. Nada poderia estar mais longe do propósito de um mito. O que quer que seja a Bíblia, verdadeira ou falsa, ela não é mito.”

Oswalt não acredita que a visão reducionista da Bíblia possa ser mantida, e argumenta apaixonadamente contra a ideia de ver a Bíblia como apenas mais um mito, primeiramente por descrever a perspectiva de continuidade que subjaz a outras literaturas do Antigo Oriente Próximo. Oswalt define a continuidade subjacente aos mitos como “a ideia de que todas as coisas que existem são partes umas das outras [...] sem distinções fundamentais entre os três reinos: a humanidade, a natureza e o divino”.[10] Tudo coexiste nessa visão de mundo. Os ídolos são símbolos dos deuses, mas, em um sentido muito real, são os deuses. Tempestades são a ação dos deuses. A reconstituição sexual humana da suposta atividade sexual dos deuses inspira a produção agrícola na realidade. Cada reino é contínuo e conectado. Nessa visão de mundo, “o criador de mitos racionaliza da realidade dada para o divino”.[11]

Oswalt dá uma variedade de características comuns de uma visão de mundo fundada na continuidade. Primeiro, essa visão enfatiza a realidade presente em detrimento do passado e do futuro. As histórias das origens não são contadas para enfatizar o que aconteceu, em si, mas para explicar a situação atual com sua complexidade de relações. Segundo, ela confunde a imagem e o real. Assim, o deus por trás do ídolo se confunde com a manifestação do deus na imagem do(s) ídolo(s). A fonte unificadora divina por trás dos deuses não pode ser facilmente distinguida da manifestação dos deuses. Terceiro, ela enfatiza símbolos naturais. A partir de uma perspectiva de continuidade, isso faz sentido, já que o que acontece na natureza representa e afeta tanto a esfera humana como a divina. Quarto, ela valoriza a magia. Oswalt define magia como a capacidade de “realizar algo no reino divino, [...] fazendo uma coisa semelhante no reino humano”.[12] Nessa perspectiva, a prostituição no culto dos povos do Antigo Oriente é uma afirmação teológica sobre a natureza da realidade. A ação sexual humana produzia prole e, em uma visão de mundo de continuidade, tal ação teria sido pensada para inspirar a ação sexual da divindade a fim de produzir a colheita. Finalmente, uma visão de mundo de continuidade inerentemente nega os limites. Uma vez que tudo se conecta e está inter-relacionado, não se pode esperar encontrar limites distintos entre as coisas. Portanto, não é surpresa encontrar prostituição, bestialidade, incesto e outros tipos de comportamento sexual, já que essa perspectiva inerentemente rejeita os limites.

Com base nessas características subjacentes a uma visão de mundo de continuidade, Oswalt apresenta as seguintes características do mito, tanto como deduções lógicas dessa cosmovisão quanto como características comuns de mito do Antigo Oriente: o politeísmo, a idolatria, a eternidade da matéria caótica, uma negação da personalidade individual, uma baixa visão do divino e do humano, a visão de conflitos como uma fonte de vida, a não existência de um padrão único para a ética e um conceito cíclico da existência. Cada uma dessas características provém claramente dos pressupostos subjacentes citados acima. Oswalt deixa claro que essa perspectiva não era apenas típica do Antigo Oriente, mas quase universal, incluindo os gregos e os romanos, os hindus e várias outras religiões asiáticas. Ele afirma que se “o homem pode descobrir a realidade última através da extrapolação de sua própria experiência [...] [então ele vai chegar], por todo o mundo, a um entendimento muito semelhante da realidade”.[13] Neste ponto, deve ficar claro que essas perspectivas não são universais, e as exceções são óbvias: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, cada qual a sustentar um entendimento radicalmente diferente da realidade. Mas de onde vem esse entendimento, senão de sua fonte de literatura comum, ou seja, a Bíblia hebraica?

Nesse ponto, eu tenho que admitir um preconceito pessoal em favor da perspectiva de Oswalt. Sempre que começava a fazer estudos bíblicos, eu o fazia em uma conceituada universidade protestante. Os professores falavam de Gênesis como sendo mítico e compartilhando incontáveis características ​​com os mitos do Antigo Oriente. Dessa forma, assumi a verdade de suas declarações. Devo admitir, porém, que foi chocante quando realmente comecei a ler a literatura do Antigo Oriente. As diferenças eram profundas e muitas das semelhanças sugeridas pareciam ad hoc. Considerando que eu podia entender algumas dessas semelhanças como polêmicas veladas contra outras literaturas do Antigo Oriente, ver as narrativas do Gênesis como uma progressão originária desses escritos parecia (e continua a parecer) impossível. Por quê? Oswalt faz um trabalho maravilhoso ao delinear a perspectiva do Antigo Testamento sobre as origens, para mostrar o quão distinta é essa visão de mundo em comparação com a visão de mundo de outros escritos do Antigo Oriente.

Considerando que os mitos do Antigo Oriente projetam uma visão de mundo de continuidade, Oswalt argumenta que a Bíblia apresenta uma visão de mundo de transcendência e de revelação. Ele enumera as características comuns do “pensamento bíblico” como o monoteísmo, a iconoclastia, a prioridade espiritual sobre o material, uma criação através de processo, uma visão elevada de Deus e da humanidade, uma visão redefinida da ética sexual (dessacralização), a proibição de magia, uma demanda por obediência ética e a importância da interação de Deus com a humanidade na história. Claramente, essas distinções são incompatíveis com a visão de mundo de continuidade descrita acima. Cada uma delas decorre do pressuposto básico de que há um Deus transcendente, fora e além da criação, o que alguns teólogos chamam de distinção Criador-criatura. Esse Deus não pode ser manipulado por magia, nem pode ser representado por qualquer coisa dentro de Sua criação, quer seja um ídolo quer seja a própria natureza. Se Ele Se revelar, Seus comandos serão inalteráveis ​​e definirão os limites para a existência dentro da criação, etc. Uma vez que a Bíblia hebraica fortalece essa visão de mundo, não é surpreendente ver que ideias típicas do Antigo Oriente, como o culto da fertilidade, a idolatria e a divindade de coisas finitas sejam totalmente rejeitadas.

Quais são as implicações dessas distinções de Oswalt para a apologética cristã? Primeiro, chamar as narrativas do Gênesis de mito requer redefinir o termo “mito” de uma forma que o torna de nenhum valor. Em segundo lugar, isso significa que as diferenças entre a Bíblia e os mitos do Antigo Oriente são mais relevantes do que as semelhanças. Oswalt mostra que há muitas semelhanças, mas há descontinuidade na forma como essas formas, ideias semelhantes são usadas ​​entre a Bíblia hebraica e literatura do Antigo Oriente. Ele diz: “[A Bíblia] não é única porque não faz parte do seu mundo, nem é única porque seus escritores eram incapazes de relacionar aquilo que eles dizem com seu mundo. [...] Ao contrário, ela é única justamente porque, sendo uma parte de seu mundo e utilizando conceitos e formas de seu mundo, pode projetar uma visão da realidade diametralmente oposta à visão desse mundo.”[14]

(Apologetics 315; G. Kyle Essary é apaixonado pelo estudo das Escrituras, especialmente do Antigo Testamento. Ele e sua família vivem no sudeste da Ásia, onde se esforçam para servir Àquele para quem o Antigo Testamento aponta. Traduzido e publicado no blog Ler Para Crer)

Referências:
1. Há uma série de livros que desconstroem esse tipo de reducionismo, alguns remontando ao início do século 20, como os clássicos The Everlasting Man, de G. K. Chesterton, e The Abolition of Man, de C. S. Lewis. Contribuições mais recentes têm praticamente eliminado qualquer plausibilidade do autêntico reducionismo materialista. Ver, por exemplo, Mind and Cosmos, de Thomas Nagel, ou Darwin’s Pious Idea, obra magistral de Conor Cunningham. Um de meus favoritos é Life is a Miracle, de Wendell Berry.
2. Postagem no blog de Rachel Held, “Can God speak through myth?” (Pode Deus falar através de mito?), encontrada em: http://rachelheldevans.com/blog/bible-myth
3. Peter Enns era abertamente evangélico no momento da publicação de seu livro, mas desde então tem adotado uma postura mais agnóstica em relação a muitas doutrinas evangélicas, rejeitando outras. Seu ponto de vista atual parece ser mais bem definido como pós-evangélico, embora tal classificação seja bastante abrangente.
4. O pensamento seguiu em grande parte a perspectiva conjecturada de Nietzsche em On the Genealogy of Morality (Sobre a Genealogia da Moral). Para a Escola, e para Nietzsche, as origens da religião e da moralidade dos escravos estão intimamente ligadas.
5. O livro de Wright, The Bible Against Its Environment (A Bíblia Contra seu Ambiente), critica a ideia evolutiva, defendendo a unicidade do texto bíblico e sua visão de mundo contra outras literaturas e perspectivas do Antigo Oriente Próximo.
6. João Oswalt, The Bible Among the Myths (A Bíblia Entre os Mitos), Kindle ed. Harper Collins, 2010, loc. 101. As histórias de criação do Antigo Oriente Próximo da “biblioteca” ugarítica foram encontradas principalmente entre 1928 e 1958; o Enuma Elish foi encontrado em 1849, assim como também o Atrahasis; a Epopeia de Gilgamesh, em 1853, com muitas das histórias egípcias sendo conhecidas ainda mais cedo.
7. Uma contribuição recente que vale a pena ler é Do Historical Matters Matter to Faith? (Questões Históricas Importam Para a Fé?),  editado por James Hoffmeier e Dennis Magary.
8. Oswalt, loc. 406.
9. Ibid., loc. 579.
10. Ibid., loc. 660.
11. Ibid., 700.
12. Ibid., 782.
13. Ibid., loc. 893. Alguns têm argumentado recentemente que o ateísmo contemporâneo também se encaixa nesse paradigma contínuo, em que a matéria é eterna e caótica (sem finalidade última originária, como uma bolha no vácuo quântico), e os poderes da realidade são reduzidos às forças brutas da natureza. Ver este artigo recente de Ben Suriano, “On what could rightly pass for a fetish (Sobre o que poderia passar certamente por um fetiche), encontrado aqui
14. Ibid., loc. 1.700.

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